Em "Gente pobre", livro publicado em 1846 e agora relançado, Dostoievski, aos 25 anos, expõe os dramas de sua época. (Resenha publicada no "Correio Braziliense", Brasília, sábado, 23/07/2011)
Criada pelo jornalista e escritor paraense Nicodemos Sena, radicado em São Paulo, a editora LetraSelvagem nasceu com o propósito de republicar obras antológicas da bibliografia nacional e estrangeira, principalmente para levar ao público alguns títulos que marcaram a história da literatura e, por algum motivo, caíram injustamente no esquecimento, muitas vezes relegando ao ostracismo os próprios autores. Um dos primeiros lançamentos da editora paulista foi Deus de Caim, do mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, romance caudaloso e de uma densidade temática e psicológica que mereceu o cobiçado Prêmio Walmap de 1967, de cujo júri participaram Jorge Amado, Antonio Olinto e Guimarães Rosa.
Na esteira desse resgate, acaba de sair Gente pobre, de Fiodor Dostoievski, com a tradução primorosa do russo realizada pelo jornalista e ex-militante comunista Luís Avelima, que viveu mais de 10 anos em Moscou, o que motivou o convite da editora, em razão do seu conhecimento da língua e de sua experiência na extinta União Soviética.
Considerado seu livro de estreia e que praticamente inaugura o romance social contemporâneo, além de revelar toda a precocidade do autor - Gente pobre saiu em 1846, quando ele tinha 25 anos -, enquadra-se na categoria da novela epistolar, cumprindo também no decorrer de toda a narrativa um certo viés ensaístico. Ao apropriar-se dos cenários e habitantes de São Peterbusgo, emergindo a decadência econômico-social e as relações psicológicas da gente comum e do lumpemproletariado, acaba por refletir sobre essas classes, construindo um painel da sociedade russa e suas penúrias.
Porém, o leitmotiv é o assédio sofrido por Varvara Aliekseivena pelas cartas trocadas com Makar Dievuchkin, um homem maduro e sedutor de meia-idade, interessado em atrair a jovem costureirinha com agrados e presentes, como uma tentativa de comprar-lhe o amor, não medindo esforços para conquistá-la, apesar de sua resistência a essa relação e ao casamento. No vaivém da intensa correspondência, desfilam os pequenos dramas e sofrimentos no descortinar dos acontecimentos do dia a dia de cada um.
A linguagem perfila a descrição naturalista e é construída com economia de meios, o que traduz a singeleza dessas vidas e repercute a miséria na relação dos personagens, destacando-se, por exemplo, o momento crucial em que Makar se ressente de seus trajes e de sua quase indigência. Ao longo das cartas, expõem toda a angústia existencial por viverem premidos por uma realidade aviltante. A convivência com as mazelas da vizinhança e os dissabores de trabalhos subalternos perturba os dois, que se situam como legítimos integrantes de uma existência apequenada pelas circunstâncias e de uma atmosfera degradante que os aparta sem tréguas. O affair culmina na total fa1ência de Makar, que se dispôs do pouco que tinha para cobrir a amada de afetos, situação que não inviabiliza o casamento.
Com Gente pobre, Dostoievski expõe os dramas individuais e coletivos de sua época, contribuindo para o entendimento de um período que viria a influenciar a ruptura institucional e política da Rússia czarista.
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Ronaldo Cagiano é esritor e crítico mineiro, radicado em São Paulo; autor, entre outros, de Dicionário das pequenas solidões (Ed. Língua Geral)