"Prosa fiada" ou "arte ingrata"? Afinal, o que é a crônica? É o que Nelson Hoffmann também se pergunta a partir da leitura de Péricles Prade, Carlos Drummond de Andrade, José Mendonça Teles e José Ribamar Garcia
Sempre que me pedem uma crônica, pergunto-me: o que é crônica?
A etimologia da palavra aponta para o grego, tendo no “tempo”, khronos, seu elemento de composição. Daí, passando pelo latim, chronica, a definição do Aurélio: narração histórica, feita por ordem cronológica. Cronológica, isto é, “segundo a ordem dos tempos”.
É com esse sentido e para o exercício dessa missão, que são nomeados os grandes cronistas do reino português, ao fim da Idade Média. E, mesmo depois, quando o Brasil já está descoberto. São esses cronistas que documentam e relatam os feitos de Portugal pelo mundo a fora. É isso, também, o que faz Pero Vaz de Caminha, ao anunciar, em carta ao rei D. Manuel, o sucesso da empreitada de Pedro Álvares Cabral e registrar as primeiras impressões colhidas em terras recém descobertas.
É também nesse sentido que Péricles Prade enquadra no gênero crônica o seu livro sobre Galileu Galilei: Crônica do Julgamento de Galileu: Poder & Ciência. Com objetividade jornalística, o autor historia os fatos que envolveram o cientista e sua teoria heliocêntrica: antes, durante e depois. Tudo é centralizado no processo do julgamento de Galileu, ponto de convergência e irradiação dos fatos.
Péricles Prade, porém, não fica só no relato dos fatos que compõem o processo. Da questão particular do julgamento, o autor parte para a análise global do divisor de águas histórico que foi o “Caso Galileu”. E põe em cheque o eterno choque entre “Poder & Ciência”. De um lado, a liberdade da busca do saber para a superação de limites; do outro, o temor da autoridade entronizada, sentindo a ameaça do conhecimento. Assim, o autor ultrapassa a crônica para ingressar no ensaio.
Crônica? O que é?
Há quem diga que a crônica, como é praticada no Brasil, é única. Talvez seja. É certo, pelo menos, que tenha definições muito próprias, muito suas, muito brasileiras. O próprio Carlos Drummond de Andrade, em título de livro, chegou a redefinir a crônica: De Notícias e Não-Notícias Faz-se a Crônica. Observe-se: de “não-notícias” também. E Vinícius de Moraes decreta-a prosa fiada. Mas reconhece: é uma arte ingrata.
Vê-se: há crônicas e crônicas. E cronistas e cronistas.
Conheci dois novos cronistas — novos, para mim: Mendonça Teles e Ribamar Garcia, ambos José. O primeiro é de Goiás; o segundo vem do Piauí. Do primeiro, li Crônicas da Campininha; do segundo, Além das Paredes.
O livro de José Mendonça Teles é coisa gostosa de se ler. Tem sabor, tem cheiro. Tem sentimento, tem reflexão. Tem memória, tem infância, tem amizade, tem namoradas, tem futebol, tem sonhos, tem vida. É leve, profundo. Risonho, triste. Prende, enrodilha, não larga. Até o fim. E, lido, a gente continua degustando.
José Ribamar Garcia nos leva em viagem pelo Brasil. As crônicas são curtas, francas, diretas. Algumas sequer chegam à meia página. E são pequenas obras-primas. Todas, pequenas ou maiores, demonstram o invulgar talento desse piauiense radicado no Rio de Janeiro. Em todas, o ambiente é pincelado com rapidez; por vezes, só referência. O diálogo é constante, particulariza personagens, desenvolve a história e colore o cenário. E o homem que emerge das crônicas é um brasileiro que poucos conhecem. O livro é primoroso.
Se há quem diga que a crônica praticada no Brasil é única, há também quem afirme ser a crônica um gênero “menor”. Por que, então, permanece, cresce? Por que imortaliza autores, é lida e relida com afinco, afã? Por quê?
A crônica é humana. É cotidiana, lugar-comum, chã. É gente, é fato, é tempo. É vida. É vida, é crônica. É crônica, é humano.
Roque Gonzales, RS, setembro/1999.
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*NELSON HOFFMANN é professor, escritor e crítico literário do Rio Grande do Sul traduzido para várias línguas; autor, entre outros, de Eu vivo só ternuras (novela) e O homem e o bar (romance)