Neste texto, publicado originalmente no caderno Prosa & Verso do jornal "O Globo" (08/05/2004, Rio de Janeiro), são abordadas questões como o choque entre culturas e a combinação veracidade e ficcionalidade no romance de Nicodemos Sena
Depois de estrear em 1999 com A espera do nunca mais, uma saga amazônica de 876 páginas, prêmio Lima Barreto-Brasil 500 Anos da UBE/RJ, o paraense Nicodemos Sena reaparece com A noite é dos pássaros, seu segundo romance, uma dessas obras capazes de transitar entre os vários mundos a que pertence o homem.
De forma eloqüente, traz para o presente o diálogo entre a História e a Literatura dos séculos de desbravamento do Brasil. Recriando e desfazendo mitos existentes a respeito da relação entre o europeu e o elemento nativo, faz da narrativa uma boa maneira de atualização de conceitos, ou, pelo menos, reorganiza o objeto de observação a partir de um outro ponto de vista, que tem a responsabilidade em preservar um panorama distinto, que agora se constitui em romance.
A noite é dos pássaros traz uma homenagem a Alexandre Rodrigues Ferreira, que, embora tenha nascido na Bahia em 1756, é, a bem dizer, português, pois, com apenas 14 anos, partiu para Portugal, só retornando ao Brasil em 1783, como naturalista formado na Academia de Coimbra. No Grão-Pará (hoje Amazônia, onde nasceu Nicodemos Sena) e Mato Grosso, Alexandre Rodrigues Ferreira pesquisou, durante dez anos, as nossas riquezas naturais, do que resultou a sua Viagem Filosófica. Na obra de Nicodemos, o cientista aparece sob o codinome de “Alexandre Rodrigo Ferreira”, aprisionado na foz do rio Amazonas pelos índios tupinambás, canibais que têm uma certa predileção em alimentar-se de portugueses, considerados inimigos de seu povo.
No cativeiro, Alexandre encontra um livro, que veio parar na aldeia após um naufrágio. A obra encontrada narra a história de Hans Staden, um alemão que também fora prisioneiro dos índios tupinambás em uma aldeia de Ubatuba, litoral de São Paulo, no século XVI. Trata-se de uma história real, da qual o autor retirou alguns elementos e boa parte do roteiro do romance, sem prejuízo para a ficção, cuja originalidade está no “como” a história é convertida em estória, e não no “quando” ou no “onde” transcorre a ação.
Publicado primeiramente no jornal “O Estado do Tapajós”, A noite é dos pássaros tem os principais ingredientes do folhetim — suspense contínuo; enredos que se imbricam gradualmente, numa intencional mistura de tempo e espaço, etc. Entretanto, o romance é mais do que a simples história de amor entre a índia Potira e o naturalista. Questões como o choque entre culturas e a combinação veracidade & ficcionalidade são abordadas. Nota-se a intensa pesquisa. Informações, idéias e costumes do século XVIII permeiam a ficção, numa refinada e complexa rede de referências, sem retirar-lhe a leveza. A utilização da língua tupi nos diálogos dá um sabor especial ao texto e permite ao leitor “vivenciar” o momento histórico.
A noite é dos pássaros dialoga com outras obras de escritores brasileiros. Como o herói de I-Juca-Pirama, Alexandre Rodrigo Ferreira será devorado em ritual antropofágico, porém, admite, perante o algoz, que não é um guerreiro e não se envergonha de demonstrar medo da morte. Como no Macunaíma, Nicodemos retoma lendas indígenas, misturando o real e a fantasia. Parte dos “fatos”, mas a estes não se prende, já que tem uma visão muito particular das coisas.
Sem perder o pulso da narrativa, deixa que seus “pássaros” voem com a imaginação.
Infelicitado pela morte iminente e anunciada, o narrador de A noite é dos pássaros busca nos sonhos um sentido para a vida, recupera o sentido original da cultura indígena, criando marcantes personagens, como a apaixonada Potira, que acompanha Alexandre durante toda a trama. E recria alguns mitos, como o de Sumé, o “cariua catu” (branco bom, em tupi), que alguns crêem ser a própria figura de São Tomé entre os índios. Enquanto no livro de Hans Staden (Duas viagens ao Brasil) o homem branco e o Deus que o governa são os elementos principais, no romance de Nicodemos Sena o índio é valorizado.
Por tais nuanças, que revelam o vigoroso estilo e intensidade do autor paraense, A noite é dos pássaros merece um lugar de destaque. É uma obra fascinante, na qual o escritor transpõe as barreiras impostas pela mediocridade e voa em todas as direções, sonhando, deixando-se levar pelas asas de seu rico imaginário, entregando-se aos espíritos que habitam a natureza, lá onde está a sabedoria, o medo lutando contra a valentia, a metáfora da vida e da morte.
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* Dirce Lorimier Fernandes é doutora em História da Cultura pela Universidade de São Paulo(USP), membro da Associação Paulista de Críticos de Artes(APCA) e autora, entre outros, de A literatura infantil (Ed.Loyola) e A inquisição na América (Ed. Arké)