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Ricardo Guilherme Dicke
Página publicada em: 13/02/2010
Considerado um dos melhores romancistas brasileiros por alguns dos principais críticos literários do país. Com "Deus de Caim", Dicke foi um dos ganhadores do Prêmio nacional WALMAP de Literatura de 1967.
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Ricardo Guilherme Dicke nasceu em 16 de outubro de 1936. Bacharelou-se em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1971. Em 1972 , licenciou-se em Filosofia, pela Faculdade de Educação também da Universidade Federal de Rio de Janeiro. Fez especialização em Heidegger e o Problema do Absoluto e Fenomenologia de Merleau Ponty e ainda frequentou a Escola Superior de Museologia.
 
Trabalhou como professor, tradutor e jornalista para várias editoras e jornais de grande circulação no Rio de Janeiro e Cuiabá. Foi revisor e copy-desk em várias editoras e especialmente entre 1973 e 1975 no jornal O Globo, do Rio de Janeiro.
 
Como artista plástico estudou pintura e desenho, entre 1967 e 1969 com Frank Scheffer e entre 1969 e 1971, com Ivan Serpa e Iberê Camargo. Estudou Cinema no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Fez exposições em Cuiabá e no Rio de Janeiro.
 
Publicou os seguintes romances: Deus de Caim, Como o Silêncio, Caieira, A chave do bismo, Madona dos Páramos, O Último Horizonte, Cerimônias do Esquecimento, Conjuctio Opositoruium no Grande Sertão (tese de mestrado em Filosofia na UFRJ), O Salário dos Poetas, Rio Abaixo dos Vaqueiros. Escreveu, além destes, mais de dez títulos de romances e outras vinte obras, de contos, teatro e poesia, que permanecem em sua casa aguardando um editor.
 
 
PRIMEIRO CAPÍTULO DE "DEUS DE CAIM":
 

I


Na rede Lázaro. Zumbidos. O irmão morto na rede. O mundo rodeando sua roda indiferente. As moscas voavam lentas e pousavam na cara dele. Não se importava, Lázaro morto, narinas paradas. Todos os telégrafos diziam: Lázaro morreu e vai ser enterrado. Para sempre. Antigamente, diziam, havia a ressurreição. Agora não. Agora a sombra que abandona este reino de sombras, caminha para sempre só, num outro reino de sombras ainda mais solitárias. Só, como um rei perdido, só, sem reinado, na essência redonda da morte. Tão fácil, morrer. Como acontecera que guiara aquele ferro frio nas entranhas de outro filho, o mais querido de sua mãe? Lázaro, morrer e ser enterrado. Agora, se entristecia a pensar. Homem morto. Rato morto. Um cheiro de figos maduros incendiava-lhe as narinas, forte, penetrante, morcegos andavam de dia? Andavam ficando diurnos, comendo os frutos da figueira. Lembrou-se de quando morrera a mãe. Fora o mesmo. Ficara assim cinco dias e assim mesmo, sem caixão, na rede, sem nada, aquele fedor decomposto – coitada, a mãe, que fizera para terminar com um cheiro daqueles? Qualquer cachorro morto, ao sol, no meio da estrada, fedia do mesmo jeito. Pois, agora, dois anos se passaram que ela estava morta, respiração da morte no fundo da terra. O velho se fora primeiro, quando ainda não nascera. Nunca soubera como foram o velório, o enterro. Devia ter sido chato, como sempre. Até ele mesmo, que se precavesse, ia ser assim também, não pensasse grandezas. No enterro da mãe, as amigas da velha vieram de dez léguas por redor. Era conhecida. Neste, só ele cuidava o morto. Seu irmão Lázaro. No fundo não se assustava. Sabia o que era a morte. Viviam dentro dela, respirando vida, mas tudo era estar-se para morrer, nada mais. Tinha de ser. E quem o soubera? Pé da serra do Juradeus, por perto de Cuiabá. Nem sertão, nem arrabalde. Mais ou menos. Viviam da vendinha que lhes deixara, mambembe, uma merda, o pai. O vizinho mais próximo era longe. E todo fim de semana ir à vila do Pasmoso, comprar mantimentos e voltar com o jeguinho carregado, o estirão queimando as alpercatas como fogo. Era uma vidinha até que agradada. Tão manso. Dava pra imaginar. Imaginar no quê? Qualquer coisa, ora bosta, mandar o irmão pros quintos, por exemplo. Mas era doloroso. Doloroso, o diabo. Mas sem remédio. Como um buraco. Depois que se caiu, está caído. Dane-se.
 
A tarde começava a cair. Sebo se esfregava em suas pernas procurando carinho. Que andava adivinhando esse gato?
 
Era um gato muito velho, de três patas, diziam que do tempo do pai. Jônatas não lhe fazia caso. Olhava de olhos semifechados, por entre os fios compridos de cabelos escorridos na cara, a paisagem familiar que anoitecia no retângulo da porta de tábuas mal formadas. Brilhava debilmente à última luz a cerca de taquaras da pequena horta. Um pé de maracujá trepava pelo esteio da varanda: frutas como enormes melões pendiam entre as folhas. Ou porque a terra batida refletia o céu ou porque emitia uma claridade muito própria nessas horas, o terreiro de barro estava claro como banhado de luar. Jônatas olhava procurando a alma de Lázaro, entre as nuvens que corriam como um rio de roxos e vermelhos, além do recorte das árvores que se limitavam com o céu. A figueira enorme parecia um guarda-chuvas ou um cogumelo e tapava uma parte do céu. Mamoeiras se esparsavam no terreno. Inúteis. Qualquer dia as poria abaixo. Mamonas lhe chamaram a infância.
 
Ele e Lázaro se banhavam sob uma corredeira de espumas brancas, ambos guris. No alto do barranco, frei Oswaldo, gordo e vermelho como um Papai Noel, de pé, lendo seu breviário. De repente gritava na sua língua enrolada: Hei, meninos, famos que chá está ficando tarde.
 
– Um pouquinho mais, frei Oswaldo – pediam. Ele, bondoso, assentia e voltava ao livro. – Zô mais um pouquinhas.
 
A água caía de uns dois metros de alto, larga e pesada, num jato branco desparramando pérolas e ouros, gotas de todas as cores, sobre as pedras negras e escorregadias. Estava longe, longe como o irmão. A morte dele? Não sabia direito. Quando fora, ontem, hoje? Uma briga por acaso, por nada. Lázaro lhe dera um sopapo, ele vira sangue, sacara da faca e se arremessara sobre o irmão. Giraram como doidos, agarrados, dentro de casa, derrubando coisas, depois saíram rolando encrespados como gafanhotos, por entre os arbustos, no mato, e durou um tempo infindável. Ao fim, quando se deu de si, o irmão, no chão estendido, olhos no céu, imóvel, possessão da morte, a faca pingando. Deu-lhe um poder, uma gana absurda de vingá-lo, uma ânsia. Apoderou-se do próprio pensamento que vagava sem direção. Ficou um tempo, a faca coçando, apoiada sobre o peito, pronto para a última determinação. Esperou o Diabo – que viesse ajudá-lo, guiar-lhe a mão mais uma vez. Mas o Diabo não vinha, estava ocupado em coisas importantes.
 
Lázaro de Amarante estava de comprido na rede, uma rede velha, surrada, suja, e esta sendo menor que ele, deixava-lhe no ar os pés descalços e as mãos lhe caíam em ângulo com o corpo. Uma toalha tapava-lhe dos joelhos ao peito. Sua cabeça se dobrava e interrogava o anoitecimento.
 
Jônatas não se movia. Nada se movia, comungando com ele. Só o céu se mudava de azul cerúleo em cobalto. Um que outro morcego varava a casa de janela a janela. Um rumor de cavalgada surgiu no silêncio e foi aumentando aos poucos até desaparecer de novo. Mas ouvia alguém que entrava pela porteira da cerca e ali parar. Um morcego chiou no escuro da outra sala. Ruídos de passos. Esporas que chinchinavam no chão de barro duro. Rodeou o terreiro e entrou sem bater, no pequeno alpendre que dava para a porta. Ao pé desta parou e descobriu-se, saudando. Sem mover-se Jônatas olhou-o indiferente. O Cardeal tinha vindo em má hora. Que adiantava que o chamasse de Cardeal? Ou de Grego ou do que fosse? Ao diabo sua fama de milagreiro. Não era desta terra. Nunca se ouvira um jargão desses, baiano, turco, o cão. Diziam até que era cigano, mas ele dizia que não. Já explicara que era chiprense, cipriota, grego, não sei que mais. Que era dum lugar lá pros infernos, Europa e tal e coisa. Ninguém entendia. Só Cirilo Serra, o doutor maranhense, se dava com ele. E este idiota morto na rede.
 
O Grego era gigantesco, feito um combaru, um moinho de pedra. E mais a cabeleira enrolada pela nuca, as barbas negras, hirsutas. As alpercatas de pneu, calças arregaçadas, a camisa de fora abotoada até o pomo de Adão, mangas compridas, o fungar, os olhos pretos, o cachimbão, um ser de lenda esquecida. Muito amigo de Lázaro. Com gente assim andava o irmão.
 
– Salve, amigo Jônatas.
 
Silêncio de Jônatas.
 
– Que aconteceu? Que faz nosso amigo Lázaro? Diria que dorme como um morto.
 
– Sim, está dormindo.
 
– Estranho o seu sono. Não sussurra.
 
– Está dormindo.
 
– Estás seguro? Parece a morte.
 
– Sim, Lázaro dorme.
 
– A ver. (Aproxima-se do cadáver e levanta a toalha que o cobre.) Por que não me mandaste chamar, Jônatas? Eu poderia salvá-lo. Agora parece que já é tarde demais. Ouvi algo do Cel. Vitorino e vim direto.
 
– Ele dorme.
 
Faz silêncio. Ouvem-se os morcegos que chiam. O Grego, davam-no por um misto de filósofo maluco e curandeiro meio profeta. Enviado às avessas de João, o Batista, de quem dizia ser emissário, só que bocaiudo, gritão, ateu, ridor, o diabo devia ser seu guia.
 
– Mas, Jônatas, como aconteceu isso? Lembra-te da nossa amizade? Lázaro não está de cara boa. Conta-me que sou teu amigo. Sabe que fui eu quem curou Dona Maria do José do Bingo, o saco rendido do Cabo Saturnino, o diabo que estava no corpo de Nhô Bonifácio Oló, lembra-te, né?
 
– Ele dorme, Cardeal.
 
– Estou vendo que foi violência. Um corte de faca. Que foi? Lázaro bebeu? Ou alguma mulher?
Silêncio de Jônatas.
 
– Que horas foi?
 
– Hoje mesmo.
 
– Conta-me como foi. Conte comigo. Tu me conheces.
 
– Ele dorme, não vês, Cardeal?
 
– Parece morto. Provável que não de todo. Sei essas coisas de morto. Vejamos. (Abaixa-se junto dele, ausculta-o, toca-o, move-o, como entendido.)
 
– Sim, ele dorme. Sinto que respira.
 
– Ele dorme, mas de outra maneira.
 
– De que maneira, homem? Só há uma maneira de dormir.
 
– Ele dorme estando morto.
 
– Ele está vivo, Jônatas. Toque neste lugar.
 
Jônatas levantou-se do mocho pausadamente, lançando os cabelos para trás, os ossos estalando, tocou o lugar que o Grego lhe indicara. Efetivamente, sentiu o coração e a respiração do irmão. Vivia. Fixou-se demoradamente no Grego, num olhar entre desafio e descrença. O irmão vivia.
 
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Ricardo Guilherme Dicke
 
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