Ricardo Guilherme Dicke compõe denso mosaico de inspiração bíblica (Resenha publicada no caderno 'Ilustrada' da "Folha de São Paulo", em 27/08/2010)
Bons escritores contam (boas) histórias; grandes escritores criam mundos.
O mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008) integrou, sempre com modéstia e extremo rigor, o seleto grupo de autores que estabelecem universos próprios para o transcurso de sua ficção, como a Macondo, de García Márquez ou a Yoknapatawpha, de Faulkner.
O reino mítico de Dicke chama-se Pasmoso, lugarejo de localização incerta nos confins do Mato Grosso, onde se passa Deus de Caim, seu romance de estreia.
Poucos escritores foram tão aclamados, e ignorados com igual fervor, quanto Dicke. Deus de Caim recebeu o Prêmio Walmap, atribuído por um júri do qual faziam parte Jorge Amado e Guimarães Rosa.
Publicado em 1968, o romance não apenas fincou os marcos geográficos da literatura de Dicke, mas também seus marcos estéticos.
ESTILO VIGOROSO
Na trama, que remete de forma direta à história de Caim e Abel, os gêmeos Jônatas e Lázaro Amarante, seres primitivos do sertão do Pasmoso, entram em conflito quando se apaixonam pela mesma mulher, Mirina.
Um mundo bruto vem à tona, temperado por intolerância e preconceito. Na verdade, é a linguagem o maior personagem da prosa de Dicke. Com um estilo vigoroso e enganosamente simples, que não esconde em nenhum momento seu alto grau de elaboração, ele conduz o leitor para um território de incertezas.
E compõe um denso mosaico que, aos poucos, revela os segredos da família Amarante e seus desvios. Romance de linhagem regionalista, porém a partir de uma sofisticada operação de linguagem. Literatura destinada a paladares exigentes. Depois de uma temporada no Rio, na década de 1960, Dicke recolheu-se a Cuiabá, onde até o final da vida dividiu seus interesses entre a literatura e a pintura. A fidelidade ao seu projeto literário fez com que o escritor nunca chegasse a grandes públicos.
Nem por isso ele concedeu. Ao contrário: radicalizou ainda mais seus procedimentos e construiu uma obra que é uma sequência de narrativas caudalosas e invariavelmente premiadas (e negligenciadas), como Caieira, Último Horizonte e O Salário dos Poetas, este um catatau de 500 páginas de uma prosa quase impenetrável.
Por fim, uma menção de louvor à LetraSelvagem, valente editora de Taubaté, pela ousadia de recolocar Deus de Caim em circulação, oferecendo, a leitores que busquem um pouco mais do que mero entretenimento, grande oportunidade de (re)descoberta de Ricardo Guilherme Dicke e de sua literatura ferozmente original.
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* Marçal Aquino é autor de Cabeça a Prêmio e O Invasor