"O universo de Nicodemos Sena supera e ofusca o que de mais impressionante no campo da saga já se publicou no Brasil" (Publicado no jornal "Hoje em Dia", 19/03/2011, Belo Horizonte - MG)
Pela LetraSelvagem, foi publicado o romance A Mulher, o Homem e o Cão, com os substantivos começando em caixa-alta, isto é, em maiúscula. E o leitor certamente reconhecerá a relevância desse cuidado, quando ler o romance de Nicodemos Sena, um paraense que, após viver boa parte da vida na Amazônia, decidiu instalar-se no estado de São Paulo.
Em entrevista, no ano que passou, Sena declarou: "Desde que saí da Amazônia, experimento uma espécie de exílio dentro do meu próprio país". Confessa mais sobre seu terceiro romance: "Escrevi-o com um sentimento de melancolia profundo, que às vezes me domina quando me recordo da pátria - mítica e simbólica - ausente. Por ter vivido no oco do mundo, conheço a noite que existe dentro do caroço de que fala um mito indígena".
Em A Mulher, o Homem e o Cão, o autor alcança o mais mágico e misterioso do que existiria mesmo no âmago da saga da região em que nasceu. De uma hora para outra, o leitor se deixa envolver, enfeitiçar, pelo mistério da floresta e dos seres fabulosos que a habitam.
Contrariando o marido, a Mulher - os personagens no romance não têm nomes - decidiu nadar nas águas claras do rio. Despiu-se, e embora tendo a sensação de que era observada. Sentiu medo, leve, fora do mundo, quis levantar-se das águas, não conseguiu. A cabeça rodopiou e os olhos giraram para um canto do rio, onde avistou, em meio à névoa, a coisa mais esquisita: "Eram uns olhinhos negros brilhantes, visguentos e viperinos, primitivos e sagazes, que me espreitavam. Fiz o sinal da cruz e balbuciei um ai Jesus! e, sentindo que ia desmaiar, tive, nesse justo momento, a visão plena da coisa que se escondia na névoa. Era uma criatura vermelha, de pela escamosa, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas".
O espantoso ser, contudo, saudou-a respeitosamente, como "princesa e senhora", com "voz doce e melodiosa". As palavras vinham de uma, depois de outra cabeça. "Salve, minha deusa, pois divina podes vir a ser".
Estas são as primeiras cenas desse romance de pouco mais de 130 páginas, em que - mais uma vez - o escritor se revela em intensidade e imaginação.
O universo de Nicodemos Sena supera e ofusca o que de mais impressionante no campo da saga já se publicou no Brasil.
Os questionamentos do comportamento humano surgem ao longo da narrativa, e muitos ensinamentos são dados pelas estranhas figuras que povoam o mundo fantástico que o Homem descobriu e visitou.
Estimulado pelo estranho ser, o Homem se sente outro e nesse clima flui o romance: "Experimentei uma sensação inteiramente nova, como se, num átimo de segundo, tivesse adquirido a consciência de uma ruptura do limite entre a matéria e o espírito. Uma voz, que parecia vir lá do fundo, disse-me: - O passado e o futuro são a mesma coisa, vives nos antepassados e os antepassados vivem em ti".
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*Manoel Hygino dos Santos é escritor e crítico literário, membro da Academia Mineira de Letras