"Gente Pobre" é a narrativa epistolar que dá início à revolução do romance por Dostoievski (Resenha publicada na Revista São Paulo (encarte da "Folha de São Paulo", 3 a 9 de julho de 2011)
O crítico literário Joseph Frank deu o subtítulo Os Anos Milagrosos ao quarto dos cinco volumes de sua biografia do célebre escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), no qual enfoca o curto espaço de tempo em que o romancista russo publicou obras como Crime e Castigo (publicada em 1866), O Idiota (publicada em 1869) e Os Demônios (publicada em 1871). São obras que elevam o realismo do século XIX a um novo plano, em que já não se pode mais falar de "romance psicológico" ou "romance social" - expressões associadas a Stendhal, Charles Dickens e Honoré de Balzac.
Dostoiévski faz a paisagem interior de suas personagens invadir o espaço público, cancela as distinções entre esfera afetiva e querelas ideológicas: paixões e ideais se confundem com a força de determinações sociais e econômicas, em uma espécie de materialismo metafísico.
Diante desse panorama, ora pois: que valor teria um livro de estreia como Gente Pobre (publicado em 1846), romance epistolar à maneira de As Relações Perigosas, de Laclos, ou Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe?
Escrito nos moldes do "ensaio fisiológico" - narrativa naturalista que, na Rússia da época, representava cenas da vida urbana e tipos de classes subalternas -, Gente Pobre trás a correspondência entre o escrevente Makar Dievuchkin e a jovem Varvara Dobroselova.
O fio condutor é o assédio de Varvara por um rico dissoluto e os esforços de Makar para evitar o casamento, cumulando-a com presentes que acabam aprofundando sua penúria.
Ao longo das cartas, os habitantes de bairros miseráveis desfilam por suas fétidas ruas e quartos de pensão de onde ecoam gemidos e soluços envergonhados e nos dá um quadro das condições sociais críticas do povo russo em pleno século XIX, onde nos deparamos com uma minoria privilegiada ligada ao czar e o restante da massa que vivia em condições insalubres e alarmantes. Com isso, Dostoiévski expõe as relações servis de uma sociedade estratificadora, cujo símbolo é a inadequação pecuniária do amor entre os missivistas e o desfecho no qual Dievuchkin aceita o matrimônio por conveniência de Varvara.
Livro que transformou Dostoiévski em celebridade nos círculos literários e políticos de São Petersburgo, Gente Pobre confere autonomia às vozes das personagens e aponta para a "polifonia" que o teórico Mikhail Bakhtin identificou em seus romances de maturidade: um belo esboço para os "anos milagrosos".
____________________
Manoel da Costa Pinto é crítico e jornalista, curador da FLIP-Feira Literária Internacional de Parati (2011)