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Dostoievski e os pobres de São Petersburgo
Página publicada em: 15/08/2011
Adelto Gonçalves
“Gente Pobre”, de Fiodor Dostoievski, que acaba de ganhar nova edição em português, em tradução de Luís Avelima, é a porta que se abre para um universo ficcional único, que retrata com fidelidade a humanidade em toda a sua miséria e degradação. (Resenha publicada no suplemento Opção Cultural do semanário "Jornal Opção", de Goiânia-GO, 13/08/2011)
Ao contrário do que ocorre com quem tenta reconstruir, ao menos na imaginação, o Rio de Janeiro oitocentista de Machado de Assis (1839-1908), do qual quase nada resta, quem vai em busca da São Petersburgo de Fiodor Dostoievski (1821-1881) acaba por encontrar muitos prédios e logradouros que lá estão desde os tempos em que o escritor russo perambulava por lá com seu chapéu negro de feltro nos dias de inverno. Quem chegou a São Petersburgo neste verão de 2011, com um pouco de sorte, pôde participar do Dia de Dostoievski,  dia 2 de julho, que foi comemorado pela segunda vez.

Essa festa, que tem tudo para se tornar uma tradição no calendário oficial da cidade, inclui uma caminhada pelas ruas e locais mais significativos da vida e da obra do escritor. O programa, organizado pela Comissão de Cultura do Governo de São Petersburgo, é muito amplo, contando com a participação de seis museus e dez outras instituições e grupos de teatros. O seu fecho é no Museu Literário-Memorial F. M. Dostoievski, que fica no cruzamento da rua Koppuznetchny com a rua Dostoevskaia, antiga Iamskaïa, não muito distante da igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir, onde  o escritor morou, sempre de aluguel, primeiro, por um curto período, na década de 1840, e, depois, com a família, de outubro de 1878 até o dia de sua morte, a 28 de janeiro de 1881.

Foi naquele apartamento que Dostoiévski, quando ainda solteiro, escreveu Gente Pobre” (Biédnie Liúdi), que acaba de ganhar nova edição em português, em tradução de Luís Avelima, pela editora LetraSelvagem, de Taubaté-SP, dirigida pelo escritor Nicodemos Sena. É de lembrar que, publicado em 1846, o romance epistolar Gente Pobre, gênero que teve seu auge no século XVIII, mas que já declinava à época, foi recebido de maneira entusiástica por Vissarion Belinsky, renomado crítico literário russo, que previu com acerto que o seu autor, então com 25 anos de idade, seria um dos gigantes da literatura russa, comparável a Gógol (1809-1852) e Pushkin (1799-1837).

A trama de Gente Pobre é construída ao desenrolar da correspondência entre o escrevente Makar Dievuchkin, funcionário público de meia-idade, e a jovem Varvara Aleksieievna e constituída pelo assédio que a pobre moça sofre por parte de um admirador rico e dissoluto. Ao longo das cartas, os personagens desfilam por ruas de bairros que seriam fétidos e degradados à época, mas que, hoje, constituem uma das muitas atrações de uma São Petersburgo que é uma cidade-museu a céu aberto.

Os prédios ainda são os daquele tempo, mas a maioria passou por reformas que procuraram preservar a construção original. De modo que ao leitor de hoje de Dostoiévski fica um pouco difícil imaginar a pobreza russa daqueles dias, uma sociedade estratificada, dividida rigorosamente entre ricos e miseráveis, que moravam em quartos de prédios transformados em cortiços, tal qual os do Rio de Janeiro de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo (1857-1913). Talvez a pobreza sãopetersburguesa não fosse tão andrajosa como a carioca, pois os pobres de Dostoievski não só são alfabetizados como cultores de livros que compartilham entre si. E mais: costumam identificar-se com personagens de Gógol e Pushkin. Sem contar que ainda davam escapadas ao teatro.

Além disso, aqueles palácios e prédios suntuosos de São Petersburgo que ainda hoje nos maravilham já estavam ali, desde que o czar Pedro o Grande (1672-1725) decidira construir, às margens do rio Neva, em 1703, a cidade que seria a capital da Rússia e que ainda hoje é a capital cultural do país. Mas, aparentemente, bem ao lado daquelas maravilhas arquitetônicas da avenida Nevski, com seus teatros, museus, salas de concertos, cinemas, bibliotecas e restaurantes, que só uma sociedade extremamente rica e culta poderia levantar, ficavam as moradias dos pobres, dos humilhados e ofendidos.

Assim, a Sexta Linha, uma das ruas paralelas da ilha Vasilievski (Vassiliévski Óstrov), onde vivia Varvara e as pessoas de suas relações em prédios de cinco aposentos, hoje é uma das ruas mais elegantes da cidade. Perto dali está o centro comercial Gostíni Dívor, uma das primeiras lojas de departamentos do mundo, onde Varvara sabia que poderia encontrar alfarrabistas que vendiam livros pouco usados pela metade do preço. Tudo isso é possível saber também pelas providenciais notas de rodapé que o tradutor Luís Avelima colocou, sem que seja necessário conhecer São Petersburgo ao vivo.

É verdade que Dostoiévski escreveria, em sua fase madura, obras mais importantes — hoje canonizadas pela crítica mundial —, como Recordações da Casa dos Mortos (1862), Memórias do Subsolo” (1864), Crime e Castigo (1866), O Idiota 1869), Os Demônios (1871) e Os Irmãos Karamazov (1879), mas neste seu livro de estreia ele já mostra a técnica que o crítico russo Mikhail Baktin (1895-1975) chamaria de “romance polifônico”, que veio para destruir “as formas estabelecidas do romance europeu, em sua maioria monológica” (quer dizer, tradicional). Por meio das cartas que seus personagens trocam, o escritor expõe as relações servis de uma sociedade imobilizada em que a ascensão social é, praticamente, vedada aos menos favorecidos, condenados à miséria.

Esse sentimento de impotência e de falta de perspectivas é o que leva Makar, depois de alguns malogrados esforços para evitar o casamento de Varvara com o pretendente rico, a aceitar o seu matrimônio por conveniência com o estúpido Bíkov como uma fatalidade, levando em conta as condições econômicas tanto dele como dela.

Na última carta que escreve para a sua Várienka, como também a chamava, ele ainda apela para que fique, para que volte atrás, mas, no fundo, sabe que aquela é uma oportunidade única que ela tem de se tornar proprietária rural, fugir daquela vida num cortiço, ainda que o futuro lhe reserve uma vida insossa, pois “o senhor Bíkov estará sempre na caça às lebres”.

Naquele mundo dostoievskiano, não há lugar para bons sentimentos: por isso, Bíkov, igualmente de meia-idade, sabe que Makar não é páreo para ele, homem bem posto na vida que só tem um objetivo: casar para deixar herdeiros e evitar que sua herança fique para um sobrinho estulto. Como sabia dos sentimentos de Makar por Varvara — que interpreta como “favores” —, diz-se disposto a pagar até quinhentos rublos por tudo que ele fizera por ela, desde que abra mão de seu interesse pela jovem.

Quando Varvara lhe diz que o que Makar fizera por ela não se pagava com dinheiro, Bíkov responde que aquilo era um absurdo, que a jovem via a vida através dos livros, “que os romances levavam as jovens a inculcar ideias extravagantes, que em geral os livros apenas corrompem os costumes e a moral”. E que, quando a jovem chegasse à idade dele, saberia enfim julgar as pessoas.

Por fim, dá-lhe um prazo para responder à proposta, pois, caso contrário, seria obrigado a casar-se com a filha de certo comerciante de Moscou. Afinal, jurara que não deixaria seus bens para aquele sobrinho tão inútil. Proposta feita e aceita: Varvara, cansada de viver num quartinho imundo, doente, magra, sabe que Makar, apesar de todos os seus bons sentimentos, não poderá salvá-la da miséria.

Como observa o tradutor Luís Avelima na apresentação que fez para esta edição de Pobre Gente, é o sentimento de humilhação o mote de Makar, um derrotado na vida, vítima da necessidade de encontrar dinheiro para sobreviver e escapar da pressão dos agiotas. E que sabe que só miséria teria a oferecer para Varvara. É um conformista, que se contentou com seu cargo subalterno no funcionalismo, que sempre aceitou a humilhação que lhe impõem os colegas de repartição e que se resigna a morar numa espelunca porque “a condição de cada homem como o seu destino são traçados pelo Todo-Poderoso”. E que para escapar da loucura e do alcoolismo só tem um remédio: escrever, escrever e escrever, para continuar respirando.

Personagem de um escritor que, em 60 anos de vida, escreveu tanto e tão excepcionais romances, além de artigos para jornais e revistas, não há como entender Makar senão como uma espécie de alter ego de Dostoievski. Para quem começa a descobrir o gênio de Dostoiévski agora, com certeza, Gente Pobre é o melhor início e a porta que se abre para um universo ficcional único, que retrata com fidelidade a humanidade em toda a sua miséria e degradação.

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*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela USP-Universidade de São Paulo.


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» Adelto Gonçalves

Jornalista com passagem em alguns dos maiores órgãos da Imprensa de São Paulo, professor univeresitário com doutorado pela USP (Univesidade de São Paulo), especialista em Literatura Portuguesa e Espanhola, autor de ensaios premiados, é também excelente ficcionista, como se pode comprovar neste romance "Os vira-latas da madrugada", um dos livros premiados, em 1980, no concurso de âmbito nacional promovido pela Livraria José Olympio Editora, que o lançou em 1981, e, trinta e quatro anos depois, é reeditado pela LetraSelvagem. "Adelto Gonçalves tem o dom de fazer viver suas personagens, convencendo o leitor de seu valor humano, mesmo quando suas ações, como as de Pingola e Quirino, lhe repugnem", escreveu Maria Angélica Guimarães Lopes, professora emérita da Universidade South Carolina, em resenha publicada na "Revista Iberoamericana", do Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, Universidade de Pittsburg, EUA, janeiro de 1985.

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