Ali conheci o poeta António Cabrita, então mandatário da Íman Edições, editora sediada em Portugal, que trazia a lume um romance inédito de Vicente Franz Cecim, Ó Serdespanto.
Conversamos um bocado. Chamou minha atenção o interesse pela literatura brasileira, por querer divulgá-la em outros países lusófonos. Chegou a comentar a incapacidade do escritor brasileiro em traduzir a emoção de um jogo de futebol. Dizia-se espantado com o fato do intelectual simplesmente desprezar a mais popular de nossas expressões esportivas. E se dispunha a publicar uma antologia de contos que versasse sobre o assunto. Acho até que tudo isso foi conversado na entrevista que fiz com Cabrita para o programa Leituras, da TV Senado.
Na despedida prometi ajudá-lo com a antologia e logo esqueci a promessa, e logo perdi seu contato.
Dez anos correu o calendário. Nunca mais voltei à Feira Pan-Amazônica, mas continuo a ler a prosa inquietante de Vicente Franz Cecim. Seu romance Ó Serdespanto ganhou, em 2006, uma edição pela Bertrand Brasil e permaneceu neste estranho limbo onde costumamos depositar talentos. O programa Leituras conseguiu se firmar e acompanhou de perto o crescimento do panorama literário. Nossos espaços são bem mais amplos, embora continuemos a dar pouca atenção ao futebol e ainda mantemos a indiferença quando nos encontramos com o novo, o revolucionário, o inusitado.
É neste tempo renovado que António Cabrita nos revisita. Seu romance A Maldição de Ondina, recém-lançado no Brasil pelo selo editorial LETRASELVAGEM (Taubaté-SP), enquadra-se bem na nova ordem literária que vivemos. Trata-se de uma espécie de elogio ao diálogo entre as diferenças. Paulatinamente vão surgindo personagens díspares, opostos mesmos que num determinado momento se unem na consagração da vida. Naturalmente que tais seres trafegam em cordas bambas, têm as horas equilibradas entre as dores e os prazeres, mas são em suma reflexos dos choques e dos encontros dos contrários.
A narrativa se passa em Maputo, Moçambique, o que por si só já acentua o diálogo. Seu autor, um português, desembarca na antiga colônia com olhos de parceiro, não de dominador. E isso faz toda a diferença, pois assim se busca entender o outro e encontrar as linhas que os amarram num abraço solidário. Como Portugal, a antiga colônia transita entre o velho e o novo, entre o arcaico mais profundo das tradições e a liberdade mais intensa da modernidade.
Este jogo de contrastes põe a prosa de Cabrita em sintonia com a literatura lusófona moderna, uma expressão artística onde se encaixa com perfeição, claro, o Brasil. Aqui também falamos de diferenças, de contrastes, praticamos diariamente o exercício da metralhadora giratória que busca todos os alvos ao mesmo tempo. Naturalmente que há os caolhos enxergando apenas uma faixa limitada e restrita de nossa literatura, mas na verdade carregamos todos os nossos sentimentos numa imensa e ampla sacola.
Em linhas gerais o leitor que partir do Centro-Oeste vai encontrar uma escola híbrida, onde a solidão e a violência dos grandes centros urbanos fazem contraponto ao ambiente lúdico e bucólico das cidades perdidas no tempo, mas onde já aportaram outras solidões, outras violências.
No Norte se alevanta uma gigantesca onda poética. Ali o trabalho se dá ao nível dos mitos. A imensa floresta é ainda uma esfinge a ser desvendada e dela ressoam os cânticos que pousam na prosa e na poesia do lugar. Tudo tão antigo e, paradoxalmente, tão inaugural.
O Nordeste preserva o canto rude, rústico e seco. Os sertões foram povoados por tecnologias, modernidades, novidades, barulhos novos, mas não perderam o sabor da jaca, da pitanga. Novos coronéis, novos jagunços, novos sentimentos e apreensões. Isso sem falar do assalto urbano a invadir as passadas comunidades rurbanas, no acertado dizer de Gilberto Freyre.
No Sudeste o desenho é de um urbanismo puro. Até mesmo os ambientes encravados nas serras, nos campos estão empesteados por esta retórica alucinada da velocidade. Todos se atropelam em todos os sentidos. Os sentimentos também se impregnam com as cores da urgência. E tudo é carne e dor, violência até mesmo no gesto simples da paixão.
Ao Sul, enfim, as linguagens são múltiplas. O campesino sobrevive sim, mas já está prenhe de outras vidas que se traduzem de forma gutural e alemã, gesticular e italiana, melodiosa e espanhola. Os sentimentos gestados nas ruas de mil automóveis parecem não se incomodar com os apelos sonoros e seguem plácidos, embora guardem no peito vulcões em constante e fatídica erupção.
A rigor não temos uma escola hegemônica. Nada toca o enleio desta nação e a unifica sentimentalmente. E isso é muito bom, pois favorece a criativa diversidade. E antes que me esqueça, os que defendem a urbanidade como sentimento de unificação de nossa literatura enganam-se, posto que o fenômeno é mais uma questão sociológica que literária. Há muito deixamos de ser um país agrário em essência.
O fato é que não nos distanciamos do ambiente literário lusófono. Naturalmente que nossa identificação mais imediata se dá com Portugal, no entanto há uma curiosa e criativa persistência nos dois lados do Atlântico. Enquanto na margem de cá somos mais libertários com a língua e amamos todas as possibilidades dos neologismos, do lado de lá se preserva mais a linguagem clássica e formal. Mesmo trabalhando com este limitador, no entanto, nossos irmãos criam uma literatura inovadora e riquíssima do ponto de vista vernacular. Condições históricas recentes levaram o país a um quase isolamento. Quando, enfim, abriram-se as portas encontrou-se uma língua preservada em sua essência, ainda pouco afetada por estrangeirismos desnecessários. O fenômeno, aliado ao espírito conservador de seus escritores – no bom sentido do termo – criou uma sonoridade nova, inaugural para nossos ouvidos estrangeiros.
Reconheço não ter leitura suficiente para falar com propriedade, com intimidade da literatura dos outros países lusófonos, mas o que me chega às mãos dá-me um divino alumbramento. Encanta-me o novel sotaque que alia as tradições portuguesas com as ousadias brasileiras. Vários autores modernos destes países tranquilamente, sem pejo, falam das várias influências que sofreram. Num primeiro momento estão os autores clássicos, depois lhes chegam o som renovador dos modernistas e, finalmente, a alegoria das telenovelas. Todas estas frentes gestaram uma literatura inquietante, fascinante. As paisagens, com suas misérias e seus encantos, dançam diante dos olhos do leitor. As guerras e outras tantas atrocidades humanas até se suavizam, mesmo sem perder o dolorido realismo. Enfim, chegam ao estágio maior da literatura: divertir, educar, refletir.
Todos estes elementos são possíveis de se encontrar no texto de António Cabrita. Sua condição de homem de vários mundos termina por favorecer a junção num único espaço dos sentimentos e da prosódia de todos os cantos onde chega a língua portuguesa. “Separada do seu homem há dez dias, por uma bala que engarrafou sua alma”, conta o escritor de uma mulher. E com frases seguras assim vai literalmente engarrafando a alma do leitor num ambiente onde se respira lusofonia, mesmo quando Rita Hayworth dança numa sala de Moçambique. Também aqui é o sentimento português de envolvimento com o estrangeiro, de troca permanente que sobrevive.
António Cabrita traz a capacidade de domar o espírito aventureiro e conservador de Portugal. E isso é o cerne de nossa alma universal.
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(*) Maurício Melo Júnior é escritor, jornalista, crítico literário e professor do CEUB-Centro de Ensino Universitário de Brasília; autor, entre outros, de A revolta do cascudo e O palhaço que perdeu o riso; apresentador do programa Leituras, da TV Senado.
» Fernando Mitre
Fernando Mitre (Oliveira, MG, 1941) iniciou sua carreira no jornalismo como repórter do jornal Correio de Minas (1963). Passou pelo Diário de Minas e o semanário O Binômio. Integrou a equipe que fundou o Jornal da Tarde (SP), onde foi diretor de redação por 13 anos. (Saiba mais...)
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