R. da Costa Silva
A partir de um lugar imaginário, Ricardo Guilherme Dicke, em seu primeiro romance "Deus de Caim", reeditado pela LetraSelvagem, faz o leitor entrar na trágica realidade de um país que rejeita sua imagem refletida no espelho revelador da grande literatura. (Publicado originalmente no jornal "Linguagem Viva", SP, maio/2010)
Livros há que não resistem ao tempo. Não é o que acontece com o romance Deus de Caim, romance de estreia do mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke. Prêmio Walmap de 1967, com 1ª edição em 1968 e 2ª em 2006, uma 3ª edição acaba de ser realizada pela LetraSelvagem (Taubaté-SP, 2010).
As edições sucessivas desse romance reafirmam a atividade intermitente desse vulcão brasileiro chamado Dicke e mostram que, neste caso, o tempo não resistiu ao livro: obras de vanguarda carecem do amadurecimento do tempo para se tornarem atuais, assim é Deus de Caim.
Ricardo Guilherme Dicke, pintor, escritor, tradutor, jornalista e, acima de tudo, filósofo profissional afeito a mergulhos nas entranhas do universo e da alma humana em busca de respostas, a bisbilhotar e questionar e teorizar, daí sua narrativa vigorosa, caudalosa, aqui e acolá percorrendo rasa, águas claras, para transmitir a ideia melhor. É escritor pujante, complexo, por vezes exibindo laconismo desconcertante, nem por isso impreciso ou pedante. Coloca o leitor em cena, fazendo-o per sentir sensações. Irrompe com ímpeto espetacular, expulsando das profundezas de seus personagens a fagulha para os sinais de fumaça, cinzas, seguidos de explosões sucessivas potentes, até o córrego da lava incandescente. Assim é Dicke, o Vesúvio de Pasmoso, a jorrar narrativa espetacular a partir dessa localidade imaginária.
As transgressões na linguagem cabem no baú das permissões possíveis que o autor entende necessárias para emprestar esse ar de desordem que caracteriza as erupções.
A obra não se submete ao cabresto da ordem estabelecida. Não! Por vezes apela ao chulo, sem grosserias, mas no geral segue indiferente às margens, violando fronteiras, infringindo preceitos, misturando sotaques, termos e expressões do Brasil e do mundo. Tudo isso de forma tranquila, natural, numa ciranda em torno de regiões, países, culturas, e quando a miséria das palavras ou a indigência dos sentidos não o satisfazem, apela às artes, notadamente à música erudita, para emprestar vigor às sensações que desejava exprimir...
A estória de dois irmãos gêmeos, Jônatas e Lázaro. No meio, Minira. De um lado, uma paixão entre Lázaro e Minira. De outro, a inveja de Jônatas sobre o romance do irmão concedendo espaço a perversidades. No entorno da estória, personagens como o Cel. Vitorino, delegado de Pasmoso, que parece haver sido criado para atender à necessidade de repúdio ao sentido de autoridade do momento político de então, nos pasmosos embutidos nos brasis por aí afora... Outro elemento é Nicephoros Aristóteles Plathos Solomos Theoklytos, o Grego: quase padre, quase médico. Dicke lhe concedeu a parte que faltava para dar vazão ao seu conhecimento extraordinário de filosofia que, aqui e ali, leva o leitor à reflexão profunda.
Deus de Caim, em suma, é um romance que explora os porões da alma humana, os superlativos de sexo, amor e ódio, de Deus e do diabo, a desesperada busca da esperança e as armadilhas de suas encruzilhadas. É romance recheado de natureza do mundo e da natureza humana, seus instantes de glórias e infortúnios. Você, leitor, encontrará certamente outras fácies, descobrirá nas dobras do romance outras facetas ou simplesmente irá abdicar da condição de leitor e submeter-se ao êxtase desta nova modalidade de narrativa que ganha pelo espetáculo das explosões. Assim é Dicke, o Vesúvio de Pasmoso. Assim é Deus de Caim.
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* R. da Costa Silva é jornalista e escritor, autor de Mosaicos do Andarilho (Crônicas, 2005)