CÂMARA DE ECOS - Texto de orelhas de
Ademir Demarchi
São já célebres as reflexões de Foucault sobre a relação da escrita com a loucura que, a partir do século XIX, como que governa os textos motivando a liberação do escritor da necessidade de ter uma relação social, podendo ele derramar-se em busca de seus limites, assunto que é explorado à exaustão por Blanchot, com quem Foucault dialoga.
A liberação do texto de qualquer amarra possibilitou, por sua vez, a entrega dos escritores não apenas à loucura do texto, mas à expressão de sua loucura no texto, a ponto de Doctorow ter se saído com uma interessante síntese segundo a qual “escrever é uma forma socialmente aceita de esquizofrenia”.
Este Diário de um médico louco é, pois, justamente, um relato que se monta sobre essas questões, ganhando ares de uma confissão de algo há muito contido, que supostamente teria levado à demência e que move a escrita, de modo a que o narrador se transforme de médico em escritor com sua fantasia de ser socialmente aceito como tal e com todos os seus defeitos e supostos crimes praticados.
Num primeiro plano, temos um narrador médico que apresenta um colega que lhe deixou um diário, esse que se lerá. Esse narrador é comedido e não tece comentários sobre o colega, mas o que descreve dele com uma aparente frieza clínica não soa normal aos olhos de um leitor arguto. E é isso que se constatará a seguir: o relato de um louco que soa como uma câmara de ecos, que é a própria ordem da literatura contemporânea. Não à toa o autor deste livro o começa com um dos clichês da literatura, ou seja, com um narrador que informa que recebeu de outro um relato que não é dele e em seguida é esse outro que passa a narrar o que se vai ler.
A partir dessa introdução a ressonância a temas caros à literatura e à vida de outros escritores, assim como aos textos deles, vai se imiscuindo no texto em cornucópia, consubstanciando a tal câmara de ecos, e assim nele passamos a ler através do médico louco os modos próprios de sua profissão, sobre como se forma um louco com direito a um batismo de fanatismo religioso, extraterrestres, autores como Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Camus, Walser, Freud e Jung, Guimarães Rosa, Cervantes, e os preferidos de Edson Amâncio, os russos, como Dostoiévski, Gógol, Pushkin, cuja parte do diário, sobre uma viagem à Rússia, é o ponto alto do livro.
O diário tenta transmitir uma “verdade”, um relato de algo que existiu, mas que, para o leitor, o tempo todo vai se colocando, de fato, como seguidos falseamentos. A dúvida, assim, perpassa a leitura, afinal em nada se pode compactuar com o narrador, pois as viagens que relata, uma delas à Rússia de Dostoiévski, podem ser totalmente falsas, uma vez que fantasias, delírios de um louco que não saiu do entorno de seu quarto, para mencionar Maistre. Desse quarto ele vê as estrelas e o mar de Santos, ironizado nas entrelinhas, e pode, através dos livros, ir à Rússia, tal como quem o lê vai...
O aviso disso parece notório já no início do diário, quando o narrador, continuando sua autobiografia, faz um relato de veterano de guerra, típico das literaturas pós guerras mundiais, para nós familiares, de tanto que já os lemos. Ocorre, porém, que esse fragmento inserido no texto imediatamente se desmonta quando o narrador informa que deixou a TV ligada... Ou seja, como se trata do relato de um louco, não somente a TV está ligada ecoando a cultura de massas em todas as suas possibilidades, mas, na esquizofrenia de eus, a própria literatura e a biblioteca de Babel que vai se presentificando nos autores mencionados, consubstanciando a loucura no texto, bem como a loucura do texto, que é a própria literatura.
Ademir Demarchi
Poeta e crítico, editor da revista Babel Poética,
doutor em Literatura Brasileira pela USP
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