Relembranças de Canudos e de como os "degenerados filhos da mestiçagem" passaram a ser vistos como injustiçados heróis. (Texto publicado originalmente no jornal "O Tempo", Belo Horizonte)
Em seu mais recente livro, Peregrinações amazônicas, o acadêmico mineiro Fábio Lucas, um dos mais respeitados críticos literários do país, aborda a obra maior de Euclides da Cunha, Os sertões, que versa sobre a campanha de Canudos, no fim do século XIX. Anota, entre muitos aspectos, a diferença apontada pelo escritor entre o homem do litoral e o do sertão, a partir de suas observações como agregado às tropas governistas deslocadas para combate ao núcleo rebelde.
De início, Euclides compartilha a ideia de estar Antônio Conselheiro "e seu grupo infeliz vitimados por um sistema de produção latinfundiário e patriarcal", a serviço da Monarquia, há pouco destituída do poder pela República (1889). Nos despachos, o correspondente da "Província de São Paulo" (o "O Estado de São Paulo" de hoje) qualifica Conselheiro de agitador sertanejo e os que o combatiam - ele assistia em Salvador ao seu desembarque, destroçados pela batalha - como heróis aos quais ainda caberia a vitória.
Naquela posição, distante do centro da luta, Euclides opina que o Conselheiro "insurgia-se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras das cidades que invadira".
Mas - observa com aguda percepção o crítico Fábio Lucas -, ao transportar-se para o cenário de lutas nos confins do nordeste baiano, o escritor, "em páginas de estilo fulgurante", exalta os filhos da mestiçagem que sua ciência indicava ser causa de degeneração e amesquinhamento do ser humano e passa a demonstrar afeição aos fatos. Essa mudança fica demonstrada nas descrições pormenorizadas das sucessivas arremetidas das forças governistas, quando, em clara inferioridade de número e armamentos, os seguidores do Conselheiro lutam, com coragem e valentia, até o seu extermínio.
Essa referência à obra e ao massacre de Canudos ocorre num momento em que outro conflito, o da vizinha Colômbia, caminha para um fim diferente. Em vez das armas, tenta-se o acordo entre as partes conflitantes. Ao contrário do calor da mata amazônica, as negociações se desenvolvem na fria e distante Noruega.
Mas, enquanto o Conselheiro teve o seu conceito de degenerado revisto por Euclides da Cunha, outro escritor, não menos notável, retratou a guerrilha da Colômbia pelo seu ângulo menos honroso, o do sequestro como modo de ação. Neste caso, a narrativa é de Gabriel García Márquez, colombiano, prêmio Nobel de Literatura de 1982. Em Notícia de um sequestro (1996), relata as horas dramáticas de um grupo de sequestrados. Contar essa história, para Márquez, visou a que o drama bestial não caísse no esquecimento. "Por desgraça, é só um episódio do holocausto bíblico em que a Colômbia se consome faz mais de 20 anos".
Recordar tais fatos, como faz Fábio Lucas em relação a Canudos por Euclides da Cunha, contribui para compreender melhor certos acontecimentos de hoje e sua projeção para o futuro. É a história que não pode se perder.
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* Ariosto da Silveira, jornalista