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Críticas

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A insanidade como releitura
Página publicada em: 03/04/2013
Gabriel Kwak
"Mas o que é invenção e o que é memória nos recortes estranhos e estilhaços do narrador? O que é confusão e o que é circunstância sob a sua lente? (...) O romance de Amâncio nos assanha a pensar ainda mais na condição humana e como essa comédia humana que nos forja nos afasta da reflexão" [Resenha publicada originalmente no jornal "O Escritor", nº 130, fev/2013, SP)
“A loucura fascina o homem porque é um saber.”
(Michel Foulcault)
 
 
Originalmente concebido para ser um conto longo, como nos revela o autor, o romance Diário de um médico louco (LetraSelvagem, Taubaté, SP, 2012) confirma o mineiro radicado em São Paulo, o neurocientista Edson Amâncio, como um dos mais fulgurantes ficcionistas do nosso tempo. Pode-se ler esse romance notável na cama, sem medo de, na horizontal, mergulharmos em sono profundo.
 
O enredo diz respeito a um médico insano (cujo nome nunca é revelado), anti-herói alucinado, que passa em revista “episódios” da sua vida na forma de um diário íntimo. Trata-se do balanço de uma existência atormentada, com temperos de surrealismo, a partir de um narrador póstumo ao estilo do sempre lembrado Brás Cubas. Póstumo, ou pelo menos, desaparecido. Antes de sair de circulação, o gastroenterologista confiou a um colega a publicação do teor do caderno.
 
Edson Amâncio cria o universo particular do “médico louco”. Nas entradas desse diário, Dr. B*, o narrador-diarista além-túmulo, se prende, em todo momento, a um niilismo de face negativa, a um fatalismo. A todo momento, a personagem está-se testando, se provocando.
 
Uma pergunta que nos persegue durante a leitura desta imaginosa narrativa picaresca é a que se prende à dúvida de onde começa o delírio do médico e onde começa o da coletividade, dos tipos sociais circundantes.
 
O editor Nicodemos Sena chamou para si a edição dessa aliciante fantasia literária urdida por Amâncio. Idealista, quixotesco até, Nicodemos, ele também romancista vigoroso, não abre mão do bom gosto dos títulos que publica, como se pode atestar ao se examinar o catálogo da sua editora, a LetraSelvagem. Edições bem cuidadas, inclusive, na apresentação gráfica, muitas delas iniciativas arrojadas quando levamos em conta nosso cada vez mais mesquinho e mercenário mercado editorial.
 
Metier oblige, Edson Amâncio, integrante do corpo clínico do Hospital Albert Einstein, é experimentado e agudo perquiridor dos entroncamentos de genialidade com loucura. Creio desnecessário enfatizar que os casos clínicos sobre os quais o autor se debruçou ao longo de tantos anos de Medicina o aparelharam como poucos para conceber relato desse escol, recriando a mente do louco. Daí por que Amâncio é convincente: ele conhece os transtornos da mente, as psiconeuroses, ele conhece o “discurso do louco”, matéria-prima, por exemplo, do Diário de um louco, de Gógol.
 
Aqui e ali, o journal do personagem me faz lembrar as anotações autobiográficas de Ascendino Leite (em mais de uma dezena de volumes...) e Eustáquio Gomes (Viagem ao centro do dia), dois cultores do gênero diário pouco indulgentes com eles mesmos.
 
A estrutura de diário serviu de pretexto para a construção ficcional, por exemplo, de Cyro dos Anjos, no seu clássico O amanuense Belmiro, e de Carlos Sussekind de Mendonça, no seu Armadilha para lamartine. O imperecível Marcos Rey também se louvou no diário como fio-condutor e cenografia de seu Diário de Raquel.
 
Numa das passagens, o “médico louco” faz a apologia da falta de lógica das coisas:
 
“Eles – os que procuram a lógica até na cor do pudim sobre a mesa – estarão condenados ao fogo perpétuo da ignorância das coisas e da incompreensão.”
 
Num trecho inesquecível, com o sal do sarcasmo, a personagem amaldiçoa os poetas. Detesta os fumantes. Noutro trecho, deu-se conta de um colóquio entre mortos, diálogo ouvido em meio às lápides de um cemitério. O narrador esquizofrênico ainda se permite generalizações duvidosas como: “Alemães, em geral, são pessoas estúpidas e mesquinhas.” Ao falar de uma moça que conheceu durante sua viagem à Rússia – se é que a conheceu de fato... - observa: “Tinha a pele tão clara que se tomasse uma taça de tinto poder-se-ia ver o vinho escorrer por sua garganta.”
 
Nesta mesma viagem, o endoscopista resenha a ocorrência de alguns efeitos que ele entende sobrenaturais durante uma visita ao Museu Dostoiévski.  Chegou mesmo a ter uma visão de Dostoiévski - durante as comemorações de seu jubileu - e de Gógol numa conferência de Soljenítsin, na Universidade de Moscou.
 
O diabo sempre cruza o caminho do personagem. Com direito a fedentina de enxofre e tudo, o coisa-ruim visita o médico e com ele trava duelos verbais, jogos dialéticos.
 
Volta e meia, uma voz estranha e intrometida se organiza dentro do dr. B* e incontrolavelmente profere coisas que ele aparentemente não quer dizer, hostilizando pessoas com as quais convive.
 
Cogita, ruminando essa hipótese no seu pensamento, suicidar-se com uma injeção de potássio, o que afastaria dar cabo da sua vida com violência, algo que não aprovava. Planejava despedir-se da vida por meio de uma carta que pensou em remeter a um antigo desafeto já falecido, nos seguintes termos:
 
“Meu caro cidadão, fulano de tal
Seu ratazana de hospício! Todo o ódio que destilaste em minha direção agora jaz por terra junto do seu espectro, ao qual hei de me juntar em breve. Que nossos ossos se abracem sob a terra.”
 
Com Diário de um médico louco, Edson Amâncio se filia à tradição respeitável de Dyonélio Machado, Murilo Mendes e Maura Lopes Cançado. Causa admiração o torneado elegante da frase no texto de Amâncio.
 
O tema da loucura, da perturbação mental e da paranoia foi também caro à ficção de Samuel Rawet (aludamos apenas a Crônica de um vagabundo...). Não resisto a lembrar do conto O manuscrito de um louco, de Charles Dickens, e dos depoimentos e reflexões de Artaud (como Van Gogh, le suicide da la societe).
 
Mas o que é invenção e o que é memória nos recortes estranhos e estilhaços do narrador? O que é confusão e o que é circunstância sob a sua lente? O que foi realidade genuína e o que foi ficção na vida filtrada do gastroenterologista?
 
Pouco importa... enxergo o livro como uma denúncia, mesmo nas suas elucubrações mais esquisitas. O romance de Amâncio nos assanha a pensar ainda mais na condição humana e como essa comédia humana que nos forja nos afasta da reflexão. O leitor fica instigado, desde logo, a questionar a improcedência das imprecações, impressões e testemunhos nas sentenças pouco piedosas desse narrador visceral e às vezes - aparentemente - fantasioso.
 
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* Gabriel Kwak é jornalista, escritor, revisor e diretor da União Brasileira de Escritores (SP)

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Autor

» Hernâni Donato

Hernâni Donato já foi chamado de "o homem dos sete instrumentos". Isto porque, aos 89 anos de idade, membro da Academia Paulista de Letras, é autor de mais de 70 livros, nos mais variados campos da atividade humana, indo da literatura infanto-juvenil à biografia, da historiografia aos costumes, da pesquisa à divulgação científica. Entre as numerosas traduções que realizou, destaca-se a da "Divina Comédia", de Dante Alighieri, em prosa e para divulgação entre o povo. Mas foi no romance que se deu a perfeita combinação do observador minucioso, na linha do cientista social, com o escritor de estilo claro e elegante. É o autor de "Selva Trágica", "Chão Bruto", "Rio do Tempo", "O Caçador de Esmeraldas" e "Filhos do Destino", sucessos editoriais nas décadas de 1950 e 60. Alguns críticos, como Abdias Lima (“Correio do Ceará”, 2/2/1977, Fortaleza, CE), aproximaram Hernâni Donato de Erskine Caldwell e John Steinbeck, a geração norte-americana da revolta, o Caldwell de "Chão Trágico" e o Steinbeck de "As Vinhas da Ira".

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