Poesia "perigosa". Poesia "metafísica, a partir da realidade da periferia". Poesia que "espalha agonia entre os leitores". Tal é a impressão que o "Tratado dos anjos afogados", livro de estréia de Marcelo Ariel, vem causando na crítica.
Marcelo Ariel nasceu em Santos, no dia 8 de julho de 1968, e vive desde os 5 anos de idade na cidade industrial de Cubatão, SP, Brasil. Dramaturgo e poeta fecundo da nova geração de escritores brasileiros, com textos publicados em suplementos e revistas literárias importantes (Babel, Cult, Rascunho, etc).
Pobre e negro, trabalhou como pedreiro, faxineiro, jardineiro e outros ofícios humildes. A fim de escapar do embrutecimento moral e espiritual a que parecia condenado, torna-se autodidata. Mantém, desde 1997, o sebo itinerante "O invisível".
Embora tenha se tornado conhecido em certos círculos de escritores e poetas de São Paulo, só agora, ao completar 40 anos de idade, é que Marcelo Ariel estréia em livro com Tratado dos anjos afogados (Ed. LetraSelvagem).
O seu trabalho com a poesia se caracteriza pela busca permanente do lirismo em meio ao horror banalizado. “Tratado dos anjos afogados deve ser saudado como acontecimento sem precedentes. (...) Marcelo Ariel transpira uma autenticidade que nada tem a ver com sua origem social – e sim com o modo como responde ao massascre do mundo efetivo”, escreve Manuel da Costa Pinto (“Folha de São Paulo”, 5/4/2008).
Segundo Ariel: “Tratado dos anjos afogados é o resultado de uma investigação metafísica do Real, no qual tento me apropriar do Real sem tentar capturá-lo em uma rede de terminologias. O meu centro é o encontro de uma diferenciação entre o Real e a realidade, pois o Real está na natureza, no rio Cubatão e no mangue, e a realidade está nas cidades arrasadas onde o ser humano é desconstruído”.
A seguir, poema de "TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS":
ESSE INVISÍVEL FANTASMA
1.
CARTA PARA A MORTE
Camões: A vala onde morto estava, o quarto onde
encontraram o cadáver de João Antônio, o sapato que Artaud
segurava, a cama molhada de suor do último sono de Caio, no paletó de Lorca a flor intacta, o prato vazio que caiu das mãos de Mandelstam, os círculos na água de Celan, momentos da sua estilística abstrata ofuscada por esses misteriosos lampejos precários, ainda assim te digo... Se fruto da identidade é assassinado pelo tempo o fantasma da essência se vinga caminhando na fraca luz das capas.
2.
A ALMA, A MORTE E A PAISAGEM
Que sentido há em querer vestir esses esqueletos feitos de paixão em pó que se afogam na névoa com facilidade para encurtar os abismos... Nenhuma lógica pode explicar o eterno retorno do fantasma das manhãs e de todas as outras invisíveis formas mortas em volta de uma idéia que não se abrirá para você como esse delicado grito das nuvens.
5.
A INVISIBILIDADE
(Morte dentro dos nomes)
“Sobre o crânio da raça humana o amor faz seu ninho” - Charles Baudelaire
A Avenida é uma chuva horizontal de crânios embrulhados em violentas pétalas de carne
cada embrulho é um segredo com florestas esquecidas transitando como poeira entre um e outro pensamento (Sussurrava Fernando Pessoa na Praça olhando para as filas aleatórias que atravessavam a rua).
Um crânio armazenando o tempo para uso exclusivo do tempo... O que não significa nada. Ele gritava para os carros: Ó infernais explosões de carnes mortas embrulhadas em perguntas. Pessoa era só mais um que gritava nas esquinas, a alguns metros dele gritavam também Ésquilo, Blake e Murilo Mendes e do outro lado da rua um cansado Edgar Alan Poe quase sem voz dividia um maço de cigarros Sucesso com Luís de Camões. Era quase impossível reconhecê-los e com certeza até o fim dos tempos estariam todos novamente mortos.
6.
KAFKA PARA ADOLESCENTES
Sendo agora uma formiga distraída este incomensurável sopro me arremessa até o abismo do ar e desapareço do meu raio de visão como a idéia da alma no instante da morte enquanto flutuo lentamente caindo em tudo através de cada milímetro humano infinito como antigos instantes da infância relembrados inclusive como o primeiro chamado em sonhos de sopro, que embora não tão eficiente como esse que arrasta o homem-inseto pensante ainda assim a esse pode ser comparado em sua selvageria doce e indiferente fugacidade.
7.
HEIDEGGER CONVERSA COM DRUMMOND
Heidegger: – Os acontecimentos não me entediam tão completamente quanto o espaço onde o vazio se transfigura nesse sobrenatural banalizado dissolvido pelo enigma da ausência sempre intangível e nunca imanente...
Drummond: – E o que nos nega na paisagem não seria capaz de nos elevar para fora do temporal?
Heidegger: – Não, só o silêncio teria esse poder... Mas ele não existe.
8.
AQUI
A volúpia de ser invisível é como esse torpor ouvindo ‘Meu
nome é ninguém’ no crepúsculo de Cubatão. (O menino de nove anos
que nunca pisou na zona industrial internado com leucemia). Depois ficamos sabendo que o ar era o Stalker. No hay graça nonada? Então vamos para Santos, o cão-mendigo-criança atravessando a praia do Gonzaga invisível como o Deus dentro do vento destroçado onde o fantasma do oxigênio dança com a morte no andar do tempo e as irradiações do sonho e as do sol constroem essa prisão que Hegel (Um pássaro morto) ou Wittgenstein (uma orquídea seca) chamaram de certeza do improvável (O nosso único trunfo) Contra o fracasso antecipado do exército das musas, enquanto na esquina o gênio do niilismo se levanta numa nuvem de maconha transgênica logo ali onde outro zumbi adolescente vomita as asas na música dos gritos e o absurdo do início e do final são a mesma picaretagem do invisível.
9.
A ÁRVORE
Escrever sem saber deve ser a essência vegetal desta liturgia
(mas o fruto desse vazio é a luz do corpo)
Para onde vai a merda etérea e rutilante do desejo e todas
as outras dimensões do mistério...
Um distúrbio secreto como o vento apenas toca levemente
essa árvore do silêncio.
Leia também sobre Marcelo Ariel:A cinza dos afogados (por Manuel da Costa Pinto - "Folha de São Paulo")
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