"Neste tempo em que o nome da Petrobras pareceria apenas ligado a falcatruas e escândalos, distanciada de seu patriótico desígnio original, surge um autor, professor, engenheiro da grande empresa, gerente de plataforma. Divide a vida entre a terra e o mar e consegue produzir crônicas de rara beleza, lembrando a poesia de “Novenário de Espinhos”, elogiado por Ivan Junqueira, da ABL". Confira na crônica de Manoel Hygino dos Santos (publicada originalmete no jornal "Hoje em Dia", Belo Horizonte, 04/12/2014)
São exatamente 174 páginas de muito sentimento, de expressões de solidariedade e amor. Assim é Uma garça no asfalto”, lançado recentemente pela LetraSelvagem, de Taubaté (SP).
Quem descobriu o autor – Clauder Arcanjo – foi o escritor e editor Nicodemos Sena, que saiu da Amazônia, onde nasceu e começou em literatura, para exercer a dupla e difícil missão no Sul.
Descobriu esse Clauder, que veio à luz em Santana do Acaraú, no Ceará, em 1963, e se mudou para Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde assina crônica semanal na “Gazeta do Oeste”.
Um caso curioso. Neste tempo em que o nome da Petrobras pareceria apenas ligado a falcatruas e escândalos, distanciada de seu patriótico desígnio original, surge um autor, professor, engenheiro da grande empresa, gerente de plataforma. Divide a vida entre a terra e o mar e consegue produzir crônicas de rara beleza, lembrando a poesia de Novenário de espinhos, elogiado por Ivan Junqueira, da ABL.
O título do livro é adequado à linha ética do autor. Adverte para a existência de pessoas que estão "fora do lugar" em determinado momento, ou são assim mesmo, ao longo da vida. Uma garça no asfalto, nada se suporia mais esdrúxulo, mas existe.
O primeiro texto antecipa os seguintes: “Tributo a uma mãe desconhecida” retrata uma jovem, de joelhos, junto a uma dessas cruzes silenciosas fincadas à margem de nossas estradas e que somam mais de 50 mil vítimas a cada ano.
São registros fúnebres nunca “notados por aqueles que são pródigos de velocidade e secos de memória”. A cruz à margem da rodovia é homenagem a uma mãe, e o autor lembra Drumond: “Se eu fosse rei do mundo baixava um decreto: mãe não morre nunca”.
A segunda crônica segue a temática: “mãe com fome”. Na calçada de uma cidade, um filho suga seios murchos, enquanto a mão materna pede comida na noite de Ano Novo. De repente, falham-lhe as últimas energias, a mulher desmaia e cai. Os que passam fazem de conta que não veem, porque não querem que o Réveillon seja estigmatizado por cena tão deplorável.
O cronista faz indagações cruciais: “onde estão as campanhas – Fome Zero, Natal sem Fome?... Onde andam os homens e as mulheres que apregoam caridades-mil em cartões repletos de mensagens lindas e emocionantes, eivadas de solidariedade? Onde se escondem, onde moram, onde vivem as famílias que prometeram um ano mais humano, mais solidário, mais...?”. E acontece aquela mãe e o filho caídos na calçada da cidade grande. Atrapalhando a passagem do ano...
Nem tudo é tão dramático, ou trágico. Há “Conversas com um papagaio literário”, contando a história de Lázaro, que adotou um desses pássaros, que pertencera a um amigo, solteirão solitário, sem parentes, falecido de repente, fulminado pela solidão. Na noite silenciosa, envolvido pelo sono de Morfeu, dormia o herdeiro do bichinho, quando este se manifestou: “Ser ou não ser: eis a questão”. Depois de um silêncio, ouviu-se: “Nenhum homem é uma ilha isolada: cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra...”.
Livro para se ler... e presentear, agora que é dezembro.
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* Manoel Hygino dos Santos é escritor e jornalista, da Academia Mineira de Letras; autor, entre outros, de Considerações sobre Hamlet.