Punguistas, prostitutas, vadios, desempregados, estivadores e pequenos ladrões, toda uma fauna humana da sombria e miserável zona portuária da cidade de Santos, litoral de São Paulo, circulam nas paginas do romance "Os vira-latas da Madrugada", de Adelto Gonçalves (Resenha publicada originalmente no jornal "Hoje em Dia", Belo Horizonte, 10/09/2015)
O livro foi lançado na mesma noite em que “houve uma bomba que explodiu no Rio Centro antes da hora e fez gorar uma tragédia que poderia ter provocado muitas vítimas”. Refiro-me a Os vira-latas da madrugada, romance de Adelto Gonçalves, que saiu sem o prefácio de Marcos Faerman, vetado pelo regime militar implantado em 1964.
Em 2015, ele é relançado, na íntegra, pela Letra Selvagem, uma casa editorial de Taubaté, fundada e dirigida pelo aplaudido escritor Nicodemos Sena, que vem apresentando uma série de obras importantes de ou sobre nossas letras.
Os vira-latas da madrugada é, antes de tudo, a descrição de fatos e personagens que sofrem atrozmente a injustiça social no cais de Santos. No maior porto do país, junto ao qual o autor passou a infância, aglutinam-se pela sobrevivência punguistas, vendedores de jogo do bicho, catadores de todo tipo de restos, mendigos, engraxates, prostitutas e aprendizes, gigolôs, velhos marinheiros de numerosas viagens por muitos mares, gente de toda idade, cor e procedência.
Os personagens de Adelto são seres humanos vítimas do sistema e de contingências de nossa época e país. Prostituição e pequenos crimes são fruto da sociedade e da degradação dos vínculos de família e de comunidade. No túmulo do personagem João de Angola, inscreveu-se que ele, “em toda sua vida nunca defendeu nenhum partido, nenhuma religião, nenhum regime que não fosse o regime de liberdade”.
A marginália foi a seu funeral, porque enfim era um dos seus, em seu tempo de passar a vida. Sula, a moça que se profissionalizou no meretrício procedente de Minas, o protetor das mulheres de beira-cais, o vagabundo de paletó surrado, a dançarina do “Old Kopenhagen”, a cafetina com seu cachorro pequinês no colo, motoristas de táxi, trabalhadores das docas, muambeiros, passadores de fumo, traficantes, o vendedor de bilhetes de loterias.
Mas havia outros, como que se dizia ex-integrante da Coluna Prestes, o escultor de pequenas peças de madeira, os briguentos e os pacíficos, uma fauna humana que enxameava o cais, doentes sem assistência, ébrios contumazes, todos irmanados, esperando talvez uma revolução que os regenerasse e os reconduzisse.
Quando o velho Marambaia, marujo de um sem número de viagens pelo mundo, morreu deixou umas folhas de papel amassadas, que resumiam seu último grito de desespero: “O homem solitário, como os falsos sábios o concebem, não existe. A rigor, todo homem é solitário, todo homem está sozinho no universo. Mas não do modo como entendem os psicólogos burgueses que pensam padronizar a mente humana com fórmulas matemáticas. Todo homem, por mais solitário que seja – mesmo aquele que se esconde de todos os perigos, que nunca desafiou uma autoridade – é sempre consequência do mundo que o cerca”.
O livro, com posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes, mineira formada pela PUC-MG, merece ser lido, é colocado por marcos Faernam, entre os clássicos de obras-primas, como “México Rebelde”, de John Reed, e “Décadas Púrpuras”, de Tom Wolfe.
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*Manoel Hygino dos Santos é escritor e jornalista mineiro, membro da Academia Mimeira de Letras e autor, entre outros, de Considerações sobre Hamlet