Em busca da infância perdida, um filho acompanha seu pai ao lugar onde este teria sido feliz. Livro-metáfora. Livro-poesia. Vida que salta do "baú de lembranças" diretamente para a Literatura. Estranho olhar. Memória enlouquecida que ilumina uma "realidade" distorcida. (Leia, a seguir, a resenha de Fernando Py, publicada originalmente no jornal "A Tribuna de Petrópolis", Petrópolis, RJ, 9/6/2017)
”Baú de lembranças” é um dos apelidos que o escritor paraense Nicodemos Sena emprega para designar os textos que compõem seu livro Choro por ti, Belterra! (Taubaté, SP: LetraSelvagem, 2017).
Temos um conjunto de 19 episódios que formam uma única narrativa. Quando qualquer pessoa cultiva o íntimo desejo de se restituir à infância e aos tempos em que criou seu próprio mundo e, nesse caso, procura visitar de novo a terra em que nasceu e guarda na memória, pode encontrar de novo essa região em que viveu. Porém tal região sempre estará incompleta – essa pessoa encontra o local mas falta-lhe a própria infância. Isto é o que, de certo modo, acontece com o pai do autor, Bernardino Sena, 78 anos, que viaja com o filho para regressar às suas origens: Belterra, que já foi distrito de Santarém e recentemente se tornou município. Chegando lá, tem a surpresa e o desaponto de achar a região em ruínas.
A sua Belterra está deserta, é uma povoação desabitada e quase destruída. Encontram afinal vestígios de atividade à margem esquerda da estrada: o portal de uma fábrica de beneficiamento de madeira. E o filho comenta: “Essa fábrica provavelmente ocupa o espaço que era das seringueiras”. Mas a fábrica está desabitada, todo o material tem aspecto de abandono.
E assim por diante. Por onde vão passando, na demanda do centro da povoação, tudo está deserto de gente, uma ausência incrível e inexplicada, pois no tempo da infância do pai, Belterra “tinha um movimento danado”. O magnata norte-americano Henry Ford resolvera investir no Brasil em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e organizou plantações de seringueiras, de cujo leite se fez a borracha necessária para os pneus usados nos carros de guerra.
Por fim, pai e filho descobrem uma casinha pobre, onde moravam um casal e a filha única. Diziam que eram pobres, mas felizes. Mais adiante, outra casinha pobre, outros sitiantes, mãe e neta, que recebem os chegados com água e café, enquanto Belterra continuava deserta, parecendo uma cidade fantasma.
E assim, pai e filho vão percorrendo a estrada comprida e inteiramente desprovida de pessoas. Chegam ao prédio da escola onde o pai estudara: está abandonado, não há nada que indique vida. Na estrada, de lado a lado, somente casas brancas totalmente desabitadas. Onde estaria o povo dali? O abandono e o lixo das ruas era tal que fez o filho lembrar-se de Macondo de García Marquez, em seus “Cem anos de solidão”. De quando em vez, os viajantes deparam com alguém, mas o povo em geral onde está?
Nesse livro-metáfora, livro-poesia, Belterra (“Bela terra”) pode ser o símbolo da infância perdida ou, segundo as reflexões do próprio Nicodemos Sena, “era certamente a cidade mais viva e povoada do mundo, não importa que eu, em minha cegueira, não enxergue as pessoas e a vida que escorrem perenes...”
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*Fernando Py é poeta, crítico literário e tradutor; traduziu a íntegra da monumental obra Em busca do tempo perdido