"Um belo romance moderno", assim conclui o poeta, escritor e crítico Anderson Braga Horta, sobre "Choro por ti, Belterra!", de Nicodemos Sena. Confira a resenha na íntegra. (Publicada originalmente no suplemento literário "Correio das Artes", encartado no jornal "A União", outubro-2017, João Pessoa-PB)
Depois de estrear, em 1999, com uma saga de 874 páginas, A Espera do Nunca Mais, que ganhou o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBB/RJ) na passagem dos quinhentos anos da chegada dos portugueses ao que veio a ser chamado de Brasil, o paraense Nicodemos Sena publicou mais dois romances, A Noite é dos Pássaros (2003) e A Mulher, o Homem e o Cão (2009), com os quais obteve, também, significativa recepção crítica, dentro e fora da Amazônia. De Antônio Olinto a Oscar D’Ambrosio, passando por Nelly Novaes Coelho, Fernando Py, Nelson Hoffmann, Antônio Carlos Secchin, Dirce Lorimier Fernandes, Adelto Gonçalves, Carlos Nejar e outros importantes críticos, sua produção literária, sempre ambientada na paisagem geográfica e humana da Amazônia, foi exalta.
Agora, depois de oito anos de silêncio, Nicodemos Sena reaparece com um novo livro, Choro por ti, Belterra! (LetraSelvagem, Taubaté, 2017, 192 pág.).
A história contada neste livro começa, em rigor, em Santarém, oeste do Pará, onde o narrador e seu pai haviam chegado na véspera desses acontecimentos (ou desacontecimentos, como talvez o leitor venha a preferir, ao termo da leitura); ou em São Paulo, donde haviam partido, de carro, por esses imensos brasis afora. Mais correto, entretanto – permitam-me ir devaneando ao embalo do atrito dos pneus no asfalto inseguro –, seria situar-lhe as origens “no Lago Grande, município de Santarém, em 1934”, onde e quando nascia Bernardino Sena, o “Bibi” cuja mãe seria forçada a deixá-lo em casa de um fazendeiro, “padrinho” Teodoro, mercê de tragédias e esbulhos que vitimaram a família. Mas o ponto crucial dessas origens, penso afinal, por ser a verdadeira iniciação à vida de Bibi, foi quando o filho mais velho do fazendeiro, “sem quê nem pra quê”, ferozmente, diria sadicamente, submeteu o menino de cinco anos a séries de insuportáveis suplícios, de que a custo logrou escapar com vida. A partir mesmo desse “Primeiro Episódio” o autor dá a conhecer a força de seu senso do dramático e sua alta qualidade narrativa, do que mais não direi aqui, para não frustrar ao leitor o privilégio de ir tomá-los em primeira mão.
Todo esse rodeio para dizer, enfim, que a “trama” propriamente dita, assentada embora sobre esses nítidos fundamentos, é todavia rala, quase inexistente. Desenvolve-se em aproximadamente um dia e consiste na viagem de pai e filho a Belterra, onde o “velho” dizia ter sido muito feliz. Uma viagem “em busca das raízes no Brasil profundo”. A rarefação dos acontecimentos, o escasso número de personagens, a pouca ou nula importância destes como agentes causam quase uma impressão de surrealismo. Ora, existirá de fato esse lugar? e estará Bernardino “preparado para se deparar com os fantasmas que visitam as suas lembranças mais remotas?”.
Sim, Belterra existe! Cidade criada por Henry Ford (que, aliás, lá não chegou a pisar) para substituir o fracassado projeto de produzir látex de seringueiras no Acre, recebeu estrutura bastante moderna e chegou a render bons dividendos, mas por pouco tempo, apenas até que a inviabilizasse economicamente a borracha sintética produzida na Ásia. Bibi, Bernardino, o pai, também existe, como existe o narrador, seu filho, que é ninguém menos que o autor do livro, Nicodemos Sena.
O autor não se apequena ante a pouquidão dos fatos que vai encontrando pelo caminho, pelo semideserto que afigura a estrada e seu destino final. Manipula habilmente, e com estilo, elementos como violência, solidão, abandono, alienação, estranheza, fantasmagoria, absurdo, saudade, gáudio e decepção, cativando o leitor episódio por episódio.
Decerto pelas circunstâncias factuais, a ficha catalográfica atribui à obra a classificação de crônica. Não sei se concordo. O basear-se em histórias reais – em fatos históricos, por exemplo – não basta para retirar à narrativa a condição de romance; nem é de alegar em contrário a brevidade do seu percurso no tempo – do que é exemplo notório o Ulisses de James Joyce, cujo périplo se condensa em menos de 24 horas. Para mim, estamos diante de um romance. A classificação é o que menos importa, mas romance – por que não? Ancorado em fatos, com ação suscitada por acontecimentos há anos passados, mas desenvolvida praticamente nos limites de um dia, em clima de tensão psicológica. Um belo romance moderno.
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* Anderson Braga Horta é poeta, contista e crítico literário nascido em Carangola-MG. Autor, entre outros, de Pulso Instantâneo (contos, 2008). Mora em Brasília-DF.