A paixão segundo M.S.
Neste texto, o cronista de Roque Gonzales(RS)comenta a vida e a obra de um dos mais respeitados intelectuais "missioneiros"

Sei, sei, o título acima é plágio da Clarice Lispector: A Paixão Segundo G. H.
Assim mesmo, uso-o, pois que me é o melhor, no momento. Devo conversar sobre o Mário Simon, o M. S. do título, e quero ser entendido. Com ou sem originalidades.
A fama de Mário Simon chegou-me cedo. Depois, um dia, acompanhei-lhe uma entrevista, na tevê, sobre as Missões Jesuíticas e fiquei impressionado com a amplidão dos seus conhecimentos. Mais um pouco, e o amigo Borck emprestou-me O Caminho da Pedra. Por ele, acompanhei a sina do índio rio-grandense e vislumbrei a saga do imigrante alemão; ante meus olhos desenrolou-se, em contraponto, o vasto painel europeu e o triste abandono missioneiro.
Até hoje, vagueio os olhos pelas distâncias, buscando ultrapassar os horizontes do final do livro.
Um dia, era 18.04.96, uma quinta-feira, em Dezesseis de Novembro, durante o 1º Seminário Regional de Literatura, conheci, pessoalmente, Mário Simon. Assisti-lhe a palestra sobre Basílio da Gama e O Uraguai. E concluí que a fama perdia para a realidade: esta era maior. O que, aliás, foi confirmado um ano depois, em nova palestra, aqui, em Roque Gonzales, quando do 2º Seminário Regional de Literatura.
Além de O Caminho da Pedra, Mário Simon tem publicados um livro de contos, Lindeiro, e dois volumes sobre a história das Missões: Breve Notícia dos Sete Povos e Os Sete Povos da Missões - Trágica Experiência. É assíduo colaborador de jornais e revistas, professor universitário e escritor premiado. Um dos mais respeitados intelectuais missioneiros.
Agora, Mário surgiu-me com o livro Passionário, uma reunião de contos e crônicas, já publicados ou inéditos. Sacudi-me à vista do livro, da capa e do título. A capa, um expressivo detalhe de um quadro impressionista de Edgar Degas. E o título seria mesmo Passionário? Passionário, do latim “passio”? “Passio”, que origina “paixão”, que é um sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão? Assim como no detalhe do quadro de Degas?
Pois era. E é. Passionário é livro de pura paixão. Apaixonado e apaixonante. Como o solitário mestre Edgar Degas perseguia os flagrantes da vida para encontrar a Verdade, Mário Simon capta os detalhes da gente missioneira para definir-lhes a Humanidade. À medida que se avança na leitura, vão nos assustando as assombrações na fumaça da lua, os fantasmas do inconsciente da solidão, a mítica zoari da Sexta-Feira Santa. Angustiam-nos os vazios do sexo insatisfeito, o suplício dos amores irrealizados, o fracasso encurralado ao rés do chão. E o grotesco da inútil abnegação, o ridículo da semana do freguês nos levam a risos regados a lágrimas.
E o que dizer, então, de Pérola? A Pérola de todos nós, a Pérola de ninguém? A desejada, a sonhada, a inalcançada Pérola? A Pérola falsa, a oferecida, a insaciável? A menina, a velha, a virgem? A Pérola mulher, a mulher pérola, a eterna Mulher.
Li o livro de uma assentada só. Enquanto lia, eu me lembrava de tantos mestres: Darcy Azambuja, João Simões Lopes Neto... Dalton Trevisan. E Kafka, sim, por que não? “A Porta” é puro kafka.
Também, eu lia e me questionava sobre o que era mais gostoso no livro: a história narrada ou a narração da história? O que era melhor: o conto ou a crônica? Por acaso, eu já vira alguém cronicar tendo piedade de uma velha bigorna abandonada, sem serventia, muda? E onde lera eu um conto de tão sublime beleza trágica quanto O Silêncio da Honra?
Pois, este era o novo e melhor Mário Simon que eu estava descobrindo. Um Mário apaixonado pela essencialidade humana, desvendando toda a miséria e toda a grandeza da nossa condição. O ser humano é a grande paixão de Mário Simon.
Roque Gonzales, RS, abril/1999.
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*NELSON HOFFMANN é professor, escritor e crítico do Rio Grande do Sul traduzido para várias línguas; autor, entre outros, de Eu vivo só ternuras (novela) e O homem e o bar (romance)