"Como tantas vezes ocorre com a boa ficção, o romance de Nicodemos Sena é um documento mais útil e veraz da vida amazônica da época que muitos trabalhos históricos e científicos", diz crítico catarinense (Jornal “Página Três”, 31/07/2004, Balneário Camboriú, SC)
Os mistérios que cercam a vida que se desenrola à sombra da floresta amazônica exerceu sempre irresistível fascínio sobre os civilizados de todo o mundo. Cientistas, pesquisadores, aventureiros, visionários, exploradores e todos os demais espécimes dessa variada fauna de andarilhos têm desafiado os perigos e o medo do desconhecido para embrenhar-se no mais fundo das florestas na tentativa, tantas vezes infrutífera, de desvendar os seus segredos.
Não faz muito que reli, e até comentei, a saga do célebre Coronel Fawcett, relatada por Antônio Callado, e que desapareceu com o filho nos confins do Mato Grosso, ou da Bahia, em circunstâncias jamais esclarecidas com precisão.
A conseqüência dessas constantes investidas foi o surgimento de uma copiosa literatura, nos mais variados gêneros, incluindo-se as numerosas obras de ficção por elas inspiradas que constituem uma estante à parte, a chamada Literatura Nortista ou Amazônica.
Nestes últimos tempos um novo e destemido expoente dessa literatura ambientada na selva e sujeita ao império das águas está se destacando em nossas letras pela forma inovadora com que vem construindo seus romances. Refiro-me a Nicodemos Sena, paraense radicado em São Paulo, cujo romance A noite é dos pássaros (Editora Cejup, Belém, 2003) acabo de ler fascinado. É o segundo romance do autor, enriquecido por excelentes ilustrações de João Castilho Neto.
O romance registra os padecimentos do fictício naturalista português Alexandre Rodrigo Ferreira que, em 1750, por azares da sorte, caiu prisioneiro dos tupinambás e assim foi mantido por longo tempo até que decidissem devorá-lo em rituais de canibalismo explícito. É nesse ambiente de terrível expectativa da morte próxima que o jovem cientista vai narrando os sucessos daqueles dias angustiantes. Através dos olhos do personagem o romancista revela o mundo surpreendente da floresta, a vida indígena em suas minúcias, seus costumes e crenças, envoltas estas num rico emaranhado de mitos, símbolos, entidades, sortilégios, deuses e demônios. Protegido por Potira, filha do cacique, ele escapa por muito pouco de se transformar em piéce de résistence de monumental banquete a céu aberto. Durante esse tempo todo, vai o leitor vivendo com ele, entre sustos e alívios, esperança e desespero, e aprendendo muito daquela realidade que o autor transmite no correr da narrativa, inclusive momentos poéticos como o amor devotado da indiazinha, a lua tisnada de sangue e o cordão alado que desce da lua, formado pela passarada insubmissa que dá título ao romance.
Chama a atenção do leitor a gama de conhecimentos sobre a Amazônia e a cultura indígena que o autor domina, sem a qual seria impossível a construção deste romance. Começando pelo uso do tupi antigo, visando a melhor verossimilhança, que o levou a complexos e exaustivos estudos, o mergulho profundo no modo de vida indígena, a reconstituição segura de suas aldeias, organização social, econômica, religiosa e tudo o mais, de forma a desenhar um painel nítido da difícil existência dos primitivos brasileiros.
Ficam gravadas a fundo na memória do leitor as cenas de canibalismo, descritas com extremo realismo, desde o tratamento preparatório dispensado à vítima até sua execução, com golpes de borduna, para ser devorado num festim macabro à luz de fogueiras e ao som de estranhos cânticos. No fundo, ressurgindo com intermitência na memória do personagem, a figura de outro estrangeiro que vivera aventura semelhante, relatada no primeiro livro publicado sobre o Brasil – Hans Staden.
Como tantas vezes ocorre com a boa ficção, o romance de Nicodemos Sena é um documento mais útil e veraz da vida amazônica da época que muitos trabalhos históricos e científicos. Mais proveito tirará o historiador e o antropólogo de sua leitura que do exame de volumosas obras de outros gêneros. Com esse livro, o autor paraense conquista um espaço definitivo dentro da ficção brasileira.
_________________
*Enéas Athanázio é escritor catarinense, autor, entre outros, de O cavalo inveja e a mula manca (contos)