Sobre "tratado dos anjos afogados" e "Oceano cais"
Estou devorando a biografia do Barthes (presente do Flávio Viegas Amoreira), encantado com os detalhes da vida desse pensador original e transgressor e com a prosa elegante e sedutora de Louis Jean Calvet. A boa biografia é, para o nosso tempo, o que o bom romance realista foi para o século XIX: leitura apaziguadora mas complexa, fonte de prazer intelectual, o triunfo da mimese.
Barthes, do seu jeito excêntrico e por vezes antiacadêmico, reorganizou a sensibilidade parisiense, defendeu idéias impopulares, foi vítima do Maio de 68, pintou e bordou. Ele preferia o discurso escrito ao discurso oral, apesar disso seus seminários fizeram enorme sucesso. Como não admirar um figura assim?
Ainda estou lendo a biografia, mas já li o Tratado dos anjos afogados e o Oceano cais. São duas coletâneas que lutaram muito pra existir. Como se o mercado editorial fosse a selva de Darwin: ringue, tatame, arena onde a criatura mais forte devora a mais fraca. Mas o mercado editorial é essa selva, ele é o açougue metafísico de que fala Marcelo, na Carta a Rimbaud! O problema é que força, no mundo dos negócios relacionados ao livro, não significa necessariamente talento poético.
Na luta pela sobrevivência literária a obra mais inquietante e controvertida, quando vence (nem sempre isso acontece, Uilcon Pereira perdeu, Holdemar Menezes perdeu, Decio Bar perdeu, naufragou), só vence pelo cansaço, pela teimosia, raramente no tempo de vida do autor, normalmente apenas depois que ele já morreu.
Tratado dos anjos afogados e Oceano cais são artefatos perigosos. Essa é a razão de sua existência: espalhar agonia entre os leitores. Mais perigosas ainda são as reflexões e o movimento corporal periférico que precederam essas duas coletâneas, que envolveram essas duas coletâneas, que se projetaram rumo ao futuro, depois que elas foram publicadas.
Algo muito parecido aconteceu com a obra de Hilda Hilst, minha maldita predileta. Estou falando de projeto poético. De projeto subversivo, contra os sacanas e os filhos da puta do departamento comercial de todas as editoras sacanas e filhas da puta (caramba, fiquei meio puto da vida). Desse projeto contemporâneo de resistência à boçalidade estão participando também o Luís Serguilha e o pessoal da Confraria do Vento, entre outros.
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*Nelson de Oliveira é escritor e crítico literário