"A novidade de não ser novo" na poesia de Artemio Zanon
Há um bocado já, recebi o livro Tempo de Execução, de Artemio Zanon. Contemplei a capa, meditei o título: o marrom da terra, da pedra; o poste da cerca; o tempo de que execução?
Abri o livro e a resposta saltou-me clara:
A poesia é!
Liberto-me ao gerá-la:
— em amá-la
e a proclamá-la
é meu tempo de execução.
Fechei o livro e tornei à meditação. Reabri o livro e atingiu-me:
Lavra dura
sal e sol
Lavrador
fere a terramada
Lavra a dor
Sulcastigo
instiga a fome:
Lavradura.
— Lavra dura?
O livro ficou-me pendendo das mãos, os olhos fugiram-me para o alto. Recostei-me, estendi as pernas. Afinal, estava eu diante do mesmo Artemio Zanon, já um pouco conhecido, ou estava eu diante de um novo Artemio Zanon, ainda desconhecido? Parodiando o velho Bruxo do Cosme Velho:
— Mudou o Zanon ou mudei eu?
A primeira informação que tive de Artemio Zanon, veio-me de um pequeno, mas valioso, livro de Janete Gaspar Machado: A Literatura em Santa Catarina. Depois, um dia, soube que Videira, ex-Perdizes, terra onde nasceu Zanon, era chão emancipado de Campos Novos, minha terra de estimação nas plagas catarinenses. Dobrei de interesse por Artemio Zanon, mas não lhe descobri a obra. Sabia alguns títulos, mas não os achava.
De repente, em outubro de 99, a surpresa: Cinco Poemas Dramáticos, do próprio Artemio Zanon, com autógrafo e tudo.
O livro era um belo livro. Por toda a parte, detalhes do cuidado do Autor em sua impressão. Desde a apresentação primorosa, a revisão feita pelo mesmo, a criação da capa, tudo. Eu estava diante de um autor que não se contentava com a simples escritura do texto. Artemio Zanon acompanhava sua obra desde o germe da concepção até a emancipação para a vida autônoma. Isto era ser um autor por inteiro.
Cinco Poemas Dramáticos são, mesmo, cinco poemas em um só livro. E eu não precisei abrir o livro para adentrar a poesia. Os títulos dos poemas já cantavam por si: “A Rosa Ferida”, “Romança da Bengala Amarela”, “Enquanto o Filho não Nasce”, “Da Morte e da Guerra”, “Catariníada”.
Fui à leitura e mergulhei no tempo. Voltei milênios na história, tornei a eras distantes. Bebi a poesia na própria fonte. Naquela fonte pura, original, a única verdadeira, a fonte que brota do coração da terra. E do tempo.
A poesia de Artemio Zanon é uma poesia de múltiplas faces, por muitos ângulos pode ser abordada. E este detalhe já é um detalhe da mais alta poesia. É poesia que não se esgota numa primeira leitura, sempre tem véus a baixar. A poesia, em sendo poesia, sempre desvenda mistérios e sempre mistérios mais apresenta. É sempre velha como a terra que pisamos, é sempre nova como o sol do amanhecer.
Eu amo dois aspetos na poesia de Artemio Zanon: a novidade de não ser novo e a força que vem da terra. Num tempo em que os assuntos parecem esgotados e muito formalismo estéril campeia por aí, esse poeta não titubeia em nos contar histórias de antanho em formas de igual tempo. "A Rosa Ferida" reconduziu-me à Idade Média e acalentou-me com a beleza doce de suas quadras, dedilhadas por vinte e dois cantos. E a romança, meu Deus do céu!, essa “Romança da Bengala Amarela”, data de quando, vem de que século? “Enquanto o Filho não Nasce” fez-me voltar a Dante Alighieri e seus tercetos de A Divina Comédia, onde permaneci com “Da Morte e da Guerra”. E, então, o que dizer da homérica força desse poema de hoje: “Catariníada”?
Aí está: poesia tão velha, novíssima!
Sou filho da terra, sou pedaço, grão. Dessa terra que é
(Também) Mãe de nossas bocas
(…)
desde que viemos a termo
Dessa terra que é a mesma terra que perpassa a poesia de Artemio Zanon, de ponta a ponta, nutrindo-a como seiva, sendo-lhe a própria poesia. Até a palavra explicativa do Poeta, na abertura, é uma fala telúrica: …, capinando poesia,(…), lavrando, semeando, tratando poesia e (…). O primeiro poema abre com
Ao cantar a natureza;
a “Romança” inicia
No campo que foi arado
para receber semente.
Ao filho que ainda não veio, considera:
se não distingues manhã,
chuva, vendaval, ardência?…
E o “Catariníada”, então, é lamento, dor, imprecação, fúria:
Nada de histórias (utópicas)
Nem me doutrinem lições
Nem me venham com discursos
E aquele aviso supremo:
A bala está no cano
a fala está no humano
e a guerra está na terra.
Viro e reviro o livro: “Tempo de Execução”… Na contracapa, a preferência de Paulo Derengoski:
Nunca a sabotagem
mas o soco;
nunca o anonimato
mas o ato.
Dentro de mim, martela:
— A bala está no cano… a guerra está na terra.
Desde sempre. Na utopia das Geórgicas, de Virgílio, nas andanças do Antigo Testamento, da Bíblia. E antes ainda. Desde sempre. E hoje. Agora.
— Então, onde a mudança, quem mudou?
Reabro o livro. Mais uma vez. Folheio, deparo:
Da palavra
extraio a lavra
Artemio Zanon foi lavrador na rude infância. E, vejo, continua lavrador. Sempre lavrador. Um lavrador definitivo, abrindo sulcos na terra da permanência. Literária.
Roque Gonzales, RS, dezembro/2000.
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*NELSON HOFFMANN é professor, escritor e crítico literário do Rio Grande do Sul traduzido para várias línguas; autor, entre outros, de Eu vivo só ternuras (novela) e O homem e o bar (romance)