A vivência difícil e sofrida do homem interiorano, e seu linguajar, nos livros de Enéas Athanázio, um "fantástico contador de histórias"
Meu filho Diego casou e mora em Campos Novos, Santa Catarina. Desde o início dos anos 70 eu conhecia o Estado de Santa Catarina praticamente inteiro. Mas, só na virada de 80-90, adentrei os Campos Gerais e conheci a legendária São João Batista dos Campos Novos. E ali deixei meu filho Diego, por motivos de futebol. Até hoje.
Em Campos Novos, o Diego deu-me a Sinara por nora e, ambos, o Eduardo por neto. E foi justamente a Sinara que me alertou para um escritor campos-novense famoso, de quem a biblioteca da cidade estava recheada de livros. Questionei-lhe o nome e ela disse:
— Enéas Athanázio.
Eu não sabia quem era. Ela encarregou-se de me arranjar o endereço. Um dia, avisou: Balneário Camboriú. E acrescentou-me o telefone.
Contatei. Aos poucos, Enéas Athanázio e eu trocamos correspondências, impressões, livros. Lemo-nos. Agora mesmo, terminei de reler (mais uma vez) São Roque da Ventania. Antes, eu já me deliciara com O Aparecido de Ituy, depois de divertir-me com Tempo Frio.
Em verdade, Enéas Athanázio é um fantástico contador de histórias… de histórias, por vezes, fantásticas. Como é o caso, por exemplo, dessa bela narrativa que é São Roque da Ventania.
A maestria de Enéas já aparece antes e sua obra é imensa. Destaco, aqui, Tempo Frio, um livro de causos simples, curtos e secos. Muitos são quase anedotas. Seriam anedotas se não traduzissem exatamente o que Enéas quer mostrar: a vivência difícil e sofrida do nosso homem interiorano. Vida primária, inclusive no linguajar.
O Aparecido de Ituy é um livro de contos que realmente impressiona pela solidez das narrativas. E o fantástico começa a entrar em cena. De cara, temos o kafkiano “Corcus”; a seguir, o realismo brutal, mas não menos verdadeiro, de “Pisando no Tubinho”; depois, passando por cenários e costumes nossos de cada dia, encontramos uma antológica descrição de um baile/namoro do interior, em “Um Alarifo”; por fim, o conto-título nos patenteia o tão freqüente surgimento de movimentos messiânicos. O próprio texto faz referência a Canudos e ao Contestado. Poder-se-ia acrescentar os “Mucker”, do Rio Grande do Sul, sem esquecer que se está em fim de século e milênio, e tais messianismos estão aí, embora sob roupagem diferenciada.
São Roque da Ventania é uma novela exemplar. Desde a primeira até a última palavra nada há que tirar nem pôr. Os personagens são traçados com absoluta correção; tempo e espaço participam de comportamentos e enredo. Este focaliza os imigrantes germânicos Lamão e Trudi, que progridem; ao redor, evolve o demais. Tudo se integra.
O destaque da novela fica para Priano, o Cipriano de Oliveira Cruz, personagem que, totalmente solitário e sempre crescendo em rejeição social humana, se animaliza, caminhando para a socialização animal. É a confirmação da sentença de Aristóteles: O homem é um animal racional e social. A “animalização” de Priano é delineada desde as primeiras linhas e cresce em precisão até o impacto final. É fantástico.
Enéas Athanázio é um Regionalista inserido no Realismo Fantástico universal. O que, convenhamos, não é pouco. Quantos autores conseguiram, ou conseguem, utilizar as gentes e modos de suas terras e aldeias e deles extrair personagens e temas universais?
Enéas Athanázio já conseguiu.
Volto, retorno. Já confessei minha ignorância: eu não sabia quem era o ilustre filho de Campos Novos. Foi preciso que meu filho Diego inventasse de jogar futebol nessa cidade para que eu vislumbrasse o fantástico mundo athanaziano. Assim, por linhas muito tortas, pois que bem distantes da arte impressa em livros, terminei por encontrar um dos mais significativos nomes das Letras Contemporâneas: Enéas Athanázio.
Roque Gonzales, RS, maio/1999.
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*NELSON HOFFMANN é professor, escritor e crítico literário do Rio Grande do Sul traduzido para várias línguas; autor, entre outros, de Eu vivo só ternuras (novela) e O homem e o bar (romance)