Ao comentar livro de poemas do catarinense Alcides Buss, o cronista gaúcho se lembra de Gertrude Stein e seu "processo de abstração da palavra (...) que é a busca do valor exato e potencial da palavra"
Volto ao “Mestre Alcides”, como é chamado Alcides Buss. Já lhe fiz referência em outra ocasião, lembro. Foi um toque rápido, de informação, um aceno ao livro Cinza de Fênix & Três Elegias. Só. E, parece-me, já vai para um ano o tempo.
Depois, soube, o livro andou disputando as finais do Prêmio Jabuti 2000. Não levou, soube também, mas é assim mesmo: prêmio é prêmio e o que passa pela cabeça dos julgadores nem sempre passa pela cabeça dos torcedores. Dos leitores. Dos apreciadores da boa poesia.
Alcides Buss é catarinense de Rio do Sul e sua poesia é das melhores deste país. Autor de uma obra que já se aproxima das duas dezenas de livros, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, diretor da editora universitária e intenso ativista cultural. Daí o dizer de Regina Carvalho: Sempre foi Mestre Alcides porque sempre fez muito mais do que ser poeta.
Por meados de abril do ano passado, uma surpresa: um cartão de Alcides Buss. Confessava-me o interesse em visitar as Missões e perguntava-me por roteiros, atrações, lugares e hotéis. É claro que respondi, prazeroso. E já contava eu com visita e bate-papo.
Nada aconteceu, a greve das universidades federais adiou tudo. Restou a troca de correspondência, sempre um gesto de fazer feliz. Até que, um dia, o acréscimo: convite para o lançamento do livro Pomar de Palavras.
— Pomar de Palavras… — devaneei.
Voltei ao Cinza de Fênix. O livro está dividido em duas partes, cada parte, em trinta cantos. A primeira parte intitula-se “O Poema”; a segunda, “O Poeta”. A forma de expressão poética é vária, não está sujeita a movimentos artísticos preestabelecidos, embora a todos perpasse. Assim, na ultrapassagem, carregando consigo o já estabelecido, o poeta inova em criação artística e síntese poética.
Na primeira parte, o poeta define o Poema; na segunda, o poema explicita o Poeta. Na definição do Poema, o poeta é direto na abordagem, crescendo sempre em metáforas, símbolos e desvelamentos:
O poema é a lança
O poema é o som
O poema é o sim
O poema é flâmula
O poema é quase nada
O poema é o limo
O poema é o salto
O poema é o açoite do vento
O poema é o delírio
O poema é o gume
O poema é o rio
O poema é o lábio
O poema é um grão
O poema é a cinza
de Fênix (…).
Repeti:
— Cinza de Fênix?!…
Fênix e suas cinzas faz parte da mitologia clássica e remonta ao velho Egito. Daí, pelos gregos, chegou aos romanos. Pelos padres da Igreja, chegou até nós. Basicamente, o mito é a crença numa ave fabulosa e única, que vivia no meio dos desertos da Arábia. Quando sentia avizinhar-se a morte, construía um ninho de plantas aromáticas, que os raios do Sol incendiavam, e nele se deixava consumir. Da medula dos ossos nascia então um verme que se transformava em outra Fênix.
Esse símbolo do pássaro, que se consome no fogo e renasce das cinzas, foi aproveitado pela Igreja. Tornou-se um símbolo de Cristo, da ressurreição que vence a morte e, de modo geral, da imortalidade.
Para Alcides Buss, é a imortalidade da Palavra. Do Verbo. Que é Deus. Pois,
O poema, qual Deus,
atravessa
o deserto.
A segunda parte, “O Poeta”, é um passeio pelo fazer poético. O autor faz poesia sobre aqueles que fizeram poesia. Como eles fizeram. Em outras palavras, um pouco estranhas: “o poeta poetiza os poetas”. Com a própria arma dos poetas, na esgrima peculiar de cada um. E questiona:
A poesia é uma;
as poéticas, muitas.
Com qual, dentre elas,
acerta o poeta?
Começa pelo fim, com Rimbaud:
Em maio há borboletas
e Rimbaud(…).
Jorge Luis Borges, Emily Dickinson, Pessoa, Drummond, Baudelaire… Neruda, William Carlos Williams, Ezra Pound… Cummings. Maiakovski, Leminski, Mallarmé… William Blake, Leopardi, Goethe… Camões, Dante, Virgílio… Por fim, o começo:
De Adão, proto-poeta,
emana a brisa,
unindo ao que passa
um semblante que fica.
E vem a chave:
Não servisses pra nada,
Poesia,
mesmo assim imensamente
servirias,
mesmo interdita,
mesmo ignorada.
Em Alcides Buss, a poesia é a poesia. Esta afirmação lembra-me Gertrude Stein e seu processo de abstração da palavra, em que as palavras agem como querem agir e como têm que agir quando têm que viver. Processo de abstração que é a busca do valor exato e potencial da palavra. Por vezes, em reiteração, assim:
— A poesia é a poesia é a poesia é a poesia…
Roque Gonzales, RS, janeiro/2001.
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*NELSON HOFFMANN é professor, escritor e crítico literário do Rio Grande do Sul traduzido para várias línguas; autor, entre outros, de Eu vivo só ternuras (novela) e O homem e o bar (romance)