Nicodemos Sena e a reconstrução do mundo amazônico
Página publicada em: 24/02/2021
Adelto Gonçalves
Nascido em 1958 em Santarém do Pará, Nicodemos Sena passou parte de sua infância entre os índios maués, na região de fronteira entre os Estados do Pará e Amazonas.
Em 1977, seguiu para São Paulo, onde teve seu primeiro emprego numa indústria têxtil localizada no bairro do Ipiranga, vivendo num cortiço, onde conheceria “seres da noite” semelhantes ao que povoariam seus futuros romances.
Estudando à noite, formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Depois de passar pelas redações de vários órgãos da imprensa paulista, no início de 2000, recebeu convite para dirigir a redação do jornal A Província do Pará e a principal editora de Belém, a Cejup, trabalhando na capital paraense até o fim do ano, quando retornou ao Estado de São Paulo, mais especificamente à cidade de São José dos Campos.
Em 2003, saiu
NICODEMOS SENA E A RECONSTRUÇÃO DO MUNDO AMAZÔNICO
(Novo artigo de Adelto Gonçalves analisa o livro A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica, de Nicodemos Sena, romance publicado pela primeira vez em 1999 que chega, em 2020, a sua quarta edição em volume de 1.112 páginas)
Por Adelto Gonçalves (*)
A Espera do Nunca Mais – Uma Saga Amazônica, de Nicodemos Sena, romance publicado pela primeira vez em 1999 pela Editora Cejup, de Belém, chega, em 2020, à sua terceira edição em volume de 1.112 páginas lançado pela Kotter Editorial, de Curitiba.
Livro de estreia, o romance, que recupera lendas e mitos, permeadas por mistério e sortilégio, matas e rios, igarapés e igapós da região amazônica, rendeu ao seu autor, em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 anos, da União Brasileira de Escritores (UBE), seção do Rio de Janeiro.
E foi tema de tese de doutoramento defendida na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em 2018, por Iza Reis Gomes Ortiz, professora de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de Rondônia (Ifro).
Resultado de muita pesquisa, esta obra, com muita imaginação e criatividade, reconstitui o mundo amazônico e se torna um documento-denúncia que ganha cada vez mais importância na medida em que aquela região é assaltada e destruída por grupos de predadores nacionais e estrangeiros que precisam colocar sua vegetação abaixo para dar espaço ao agronegócio, especialmente às plantações de soja, principal produto de exportação brasileiro, responsável por quase 30% do total das vendas ao exterior feitas em 2019.
E acabam por cooptar autoridades para o seu trabalho de destruição da floresta e do meio ambiente, a partir da exploração da mão de obra semiescrava, tudo em favor do grande capital.
Dividido em três longas partes, o romance começa por levar o leitor a conhecer o mundo mágico e primitivo da floresta entre a década de 1950 e a época conturbada do regime militar (1964-1985); depois, penetra nos meandros do mundo político-econômico marcado pela ganância dos exploradores que não hesitam em destruir o pouco que resta das culturas primitivas, desde que haja cada vez mais espaço para plantações e pastagem; e, por fim, a especulação do que será a Amazônia em breves anos, com perda total de sua identidade e as consequências que a sua destruição deverá causar ao meio ambiente de todo o planeta.
II
O romance começa em tom triunfal com a presença do caboclo Gedeão, resultado da chegada do sertanejo Silvestre Bagata à região amazônica em outros tempos para se tornar o primeiro morador branco do rio Maró.
A exemplo do seu inspirador bíblico, Gedeão teria sido escolhido pelas forças divinas para resgatar a Amazônia das mãos daqueles que tramam a sua destruição.
Ele tem de lutar contra Estefano Alves Barbosa, seu “padrinho”, o vilão da obra, representante das forças do mal, que seria a reencarnação do explorador e militar português Bento Maciel Parente (1567-1642), que, em 1639, comandou as chamadas ‘tropas de resgate’, que tinham por objetivo “libertar da escravidão e salvar da morte certa os infelizes índios aprisionados por outras tribos, subjugando-os, porém, a uma nova e mais atroz escravidão”.
E que fez fama pela crueldade com que dizimava as tribos indígenas.
De notar é que neste romance há também personagens femininas de grande significado: Diana, uma espécie de reencarnação das qualidades e mistérios da população amazônica; e Dora, a fazendeira que mandou construir uma escola em sua propriedade para que ela mesmo desse aulas aos tapuias e aos caboclinhos da vila de Aritapera, semeando sonhos.
Profético, este romance a cada dia se torna mais atual, já que muitas de suas disfarçadas previsões começam a se confirmar, a partir da chegada ao poder de velhos representantes dos chamados “porões da ditadura” e seus prosélitos, que insistem em esvaziar os cofres das instituições governamentais que se dedicam à educação e à pesquisa para fomentar, através da distribuição de migalhas entre as massas famélicas, a troco de votos de cabresto, a perpetuação de uma sociedade injusta e cada vez mais ágrafa que, assim, nunca haverá de se organizar para defender os seus direitos.
É o que se deduz das palavras que encerram este livro e que, portanto, merecem ser transcritas aqui para que o leitor tenha pelo menos uma pálida ideia do estilo mítico e iconoclasta do autor: “(…)
Enquanto mastigava o delicioso beiju que Matilde fizera para ela, Dora pensou que Tainacã, a estrela grande, dera aos tapuios a semente da mandioca, do milho e de outros grandes plantas que eles não conheciam. Mas de quê adiantou?
Os brancos vieram e roubaram o futuro dos índios. Ela faria a diferença; daria algo que ninguém ia poder tomar.
Ensinaria as crianças tapuias a lerem e escreverem, a se defenderem no mundo hostil que estava para vir, mas também contaria as histórias antigas que os velhos gostariam de esquecer, plantando, assim, na mente das crianças, a semente dos sonhos, para que elas, ao crescerem, não ficassem como seus pais: À ESPERA DO NUNCA MAIS”.
Enfim, como observa no posfácio que escreveu para esta obra o escritor Ronaldo Cagiano, sem demérito para Márcio Souza, Dalcídio Jurandir (1909-1979), Thiago de Mello e Ferreira de Castro (1898-1974), que produziram obras antológicas sobre a Amazônia, Nicodemos Sena conseguiu “formular um diálogo com a natureza desafiadora de uma região muito explorada (e agredida) pelo homem e pouco visitada pela literatura”.
É obra que veio para ficar.
III
Nascido em 1958 em Santarém do Pará, Nicodemos Sena passou parte de sua infância entre os índios maués, na região de fronteira entre os Estados do Pará e Amazonas.
Em 1977, seguiu para São Paulo, onde teve seu primeiro emprego numa indústria têxtil localizada no bairro do Ipiranga, vivendo num cortiço, onde conheceria “seres da noite” semelhantes ao que povoariam seus futuros romances.
Estudando à noite, formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Depois de passar pelas redações de vários órgãos da imprensa paulista, no início de 2000, recebeu convite para dirigir a redação do jornal A Província do Pará e a principal editora de Belém, a Cejup, trabalhando na capital paraense até o fim do ano, quando retornou ao Estado de São Paulo, mais especificamente à cidade de São José dos Campos.
Em 2003, saiu à luz o seu segundo romance, A Noite é dos Pássaros, igualmente recebido com entusiasmo pela crítica, publicado em forma de folhetim, em dezoito episódios semanais, de 3 de abril a 31 de julho, no jornal O Estado do Tapajós, de Santarém, e na revista eletrônica portuguesa TriploV, editada pela escritora Estela Guedes.
Ainda em 2003, A Noite é dos Pássaros foi publicado em formato de livro (Editora Cejup), conquistando neste mesmo ano o prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras e, em 2004, a menção honrosa do prêmio José Lins do Rego, da UBE, seção do Rio de Janeiro.
Já o terceiro romance de Sena, A Mulher, o Homem e o Cão (Taubaté, LetraSelvagem, 2009), não só confirmou o talento do escritor como se tornou também obra de referência para o estudo temático da vida das populações marginalizadas da Amazônia (indígenas e caboclos).
Nicodemos Sena é hoje nome reconhecido fora da Amazônia, tendo se tornado verbete na Enciclopédia de Literatura Brasileira, direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (edição conjunta da Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional e Academia Brasileira de Letras, 2ª edição, 2001).
Em 2007, criou a editora a LetraSelvagem, que tem como objetivo incentivar o gosto pela leitura e promover a linguagem literária, além de desenvolver atividades que estimulem a tomada de consciência pelas populações, povos e etnias submetidos a qualquer tipo de dominação.
Em 2017, publicou pela editora LetraSelvagem, com prefácio deste articulista, Choro por Ti, Belterra!, obra escrita em prosa poética e formada por 19 episódios, em que reconstituiu o dia em que fez viagem de retorno às origens, em companhia de seu pai, depois de um percurso de algumas horas pela rodovia Santarém-Cuiabá, até entrar numa estradinha de terra que leva à Estrada Um e, enfim, às ruínas da cidadezinha de Belterra, que, na década de 1940, foi dirigida pela Ford Motor Company, empresa do magnata norte-americano Henry Ford (1863-1947), que, em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tentaria fazer da extração da borracha uma atividade lucrativa, fornecendo os pneumáticos para movimentar os veículos militares.
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A Espera do Nunca Mais: uma saga amazônica, de Nicodemos Sena, com posfácio de Ronaldo Cagiano. Curitiba-PR: Kotter Editorial, 1112 páginas, 2020. E-mail: contato@kotter.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de são Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Olympio Editora, 1981; LetraSelvagem, 2015) e O Reino, a Col&oci rc;nia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br