Segundo o antropólogo Roberto DaMatta, que escreveu o prefácio, este livro do jornalista Fernando Mitre traz em suas páginas verdadeiras "aulas de História, Política e Jornalismo". (Leia o prefácio na íntegra)
Acabo de ler Debate na Veia de Fernando Mitre. Sinto-me marcado intelectualmente e impactado emocionalmente com a exposição luminosa — uma precisa descrição etnográfica, como diria o meu lado antropológico — da imensa tarefa de organizar e tornar crítico para o aprendizado democrático o debate político — evento que consagra, ao lado de outros trabalhos, o jornalismo de Fernando Mitre.
O encontro marcado e balizado por regras precisas e por uma dramaturgia adequada, de candidatos a cargos públicos consagrados por meio do voto livre dos eleitores. Um momento cuja função explícita é permitir um conhecimento direto, pessoal e emocional dos que têm como projeto profissional competir por cargos abertos à toda a sociedade, mas que são efetivamente ocupados por disputantes que se propõem a competir e a estabelecer uma “elite política” consagrada pelo voto popular. Sufrágio que simboliza a “vontade” da população como constituinte no ritual eleitoral, essa cerimônia básica das democracias.
Neste sentido, Fernando Mitre nos relata como trabalhou e usou o seu talento jornalístico para conceber no Brasil um rito pré-eleitoral destinado a relacionar candidatos e eleitores naquilo que é, reitero, um requerimento das democracias. E, no caso de países com um histórico de governos coloniais aristocráticos, a dissolver no “debate democrático aberto” o forte traço hierárquico do sistema tradicional, cujo modo de dominação era aristocrático e autoritário.
Este livro alarga os aspectos formais desse encontro, mostrando, em linguagem viva e literariamente atraente, sua profundidade. Revela as durezas de estabelecer regras porque, afinal de contas, a tão chamada “luta política”, transcrita em imagens abertas ao publico, é a melhor senão a única maneira de humanizar essa classe que o povo, mesmo quando é por ela governada, conhece superficialmente. O debate, deste modo, vai além dos formalismos e estereótipos consagrados ideologicamente, para assentar a “pessoa política” como um “candidato” a um cargo aberto e disputado.
Se podemos nos irritar num jogo de futebol‚ cujas regras são claras e mais do que estabelecidas, no “debate político” o trabalho de acertar as etiquetas com assessores e marqueteiros e com o próprio astro do evento, o candidato, é — como revela o livro — um esforço de paciência, entendimento e talento. Pois, no Brasil, o confronto é mal visto. Discordar abertamente, correndo o risco do “bate-boca”, não combina com a nossa concepção de “política”, mais afeita à malandragem e ao fingimento do que à desavença. Isso para não falar das consequências do debate, que podem ser fatais, como relembra Mitre, para os disputantes.
Essa saga de produzir tais eventos cruciais numa democracia é o que você vai encontrar no texto do maior e mais experiente produtor de debates ou duelos políticos no Brasil. Aqui, o jornalista atinge na veia este palco revelando o “candidato” a olho nu e em estado de graça. Tal como ele, de fato e de direito, é, ou finge ser, em sua sabedoria ou ignorância, sua graça ou desgraça que, infelizmente, só vai surgir depois da tal “posse do cargo”...
No fundo, o “debate político” é um importante portal da democracia. É com ele, como elucida Mitre, que se aprende — tal como acontece nas arenas esportivas — a discordar concordando, a transformar o inimigo em adversário, a neutralizar etnia, classe social e gênero, e a respeitar escolhas de todos os tipos. Ali também deduzimos o nível de lealdade do candidato a certos limites impossíveis de serem percebidos nos comícios, pois a lógica do palanque é outra. Ela não tem a sutileza da televisão na qual os candidatos surgem como pessoas e não como santos nos seus altares. Daí, sem nenhuma dúvida, o mérito desses ensaios que recapitulam como foi duro abrir espaços amordaçados pelas personalidades dos postulantes e pela dialética brasileira entre autoritarismo populista e republicanismo sem conflitos de interesses.
Ao longo desta importante jornada, Mitre relembra os momentos mais emocionantes e pitorescos destes rituais pré-eleitorais. Ademais, o leitor é gratamente surpreendido em desvendar o aprendizado político do jornalista. Aqui, vale destacar a sua diamantina isenção democrática e profissional na condução dos debates, o que faz com que eu recomende esse livro aos estudantes de jornalismo. Pois ele demonstra a possibilidade tão criteriosamente relembrada por Fernando
Mitre de escolher a isenção. Escolha difícil, sem dúvida, opção que neste Brasil de hoje parece impossível, mas que surge em toda a sua integridade moral nos bastidores deste livro. É onde está o coração do bom jornalismo e da democracia. (Prefácio de Roberto DaMatta)
Edson Amâncio nasceu a primeiro de janeiro de 1948, em Sacramento-MG, e vive em São Paulo. Pertence à nobre estirpe de escritores (infelizmente em extinção) da qual fazem parte Machado de Assis ("Quincas Borba", "O alienista"), Graciliano Ramos ("Angústia"), Dyonelio Machado ("Os ratos", "O louco do Cati") e Dostoiévski ("Notas do subsolo", "Memórias da casa dos mortos").