Livros dos poetas brasileiros Olga Savary, Edivaldo de Jesus e Marcelo Ariel, recém-lançados pela Ed.LetraSelvagem, são comentados em texto originalmente publicado no portal do "Pravda" (jornal russo)
I
Autor de A espera do nunca mais - uma saga amazônica, romance de 877 páginas (Belém, Editora Cejup, 1999), que ganhou em 2000 o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos da União Brasileira de Escritores, e A noite é dos pássaros (Belém, Editora Cejup, 2003), o romancista Nicodemos Sena (1958) nasceu em Belém e passou parte de sua infância entre os índios maués, na região de fronteira entre os Estados do Pará e Amazonas. Em 1977, veio para São Paulo, onde se formou em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica e em Direito pela Universidade de São Paulo.
Há algum tempo radicado em Caraguatatuba, pequena cidade do Litoral Norte paulista, está agora empenhado em colocar em funcionamento uma casa editora fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, a Associação Cultural LetraSelvagem, tarefa, aliás, nada fácil. Para marcar o início do recém-criado selo editorial LetraSelvagem, acaba de lançar três livros de poesia: Anima animalis: voz de bichos brasileiros, de Olga Savary, com gravuras de Marcelo Frazão; O homem deserto sob o Sol, de Edivaldo de Jesus Teixeira; e Tratado dos anjos afogados, de Marcelo Ariel.
II
Também nascida em Belém, mas radicada no Rio de Janeiro há décadas, Olga Savary (1933), ficcionista, ensaísta, antologista, tradutora e jornalista, já ganhou 40 prêmios nacionais de literatura. Traduziu mais de 50 títulos de escritores como Jorge Luís Borges (1899-1986), Octavio Paz (1914-1998), Pablo Neruda (1904-1973), Federico García Lorca (1898-1936), Mario Vargas Llosa (1936) e outros. Com sua poesia traduzida para América Latina, Europa, Estados Unidos, China e Japão, dá palestras em congressos e universidades do Brasil e do exterior. Fundadora do lendário semanário O Pasquim, do Rio de Janeiro, em 1969, recebeu o Prêmio Internacional Brasil-América Hispânica de 2007 pelo livro Berço esplêndido e o Prêmio Josué Montello da Academia Brasileira de Letras por um romance ainda inédito.
Anima animalis é o seu 19º livro de poesia, ao qual acrescentou o subtítulo Voz de bichos brasileiros. O livro, que inclui nove hai-kais e um poema longo, com versões em espanhol, finlandês, francês, inglês e italiano, nasceu de uma idéia que teve em 1996, quando o gravador Marcelo Frazão (1964) a convidou para traduzir em texto imagens de animais que ele havia produzido usando as técnicas da gravura em xilo e metal. Como eram animais europeus, a poeta logo imaginou que a vasta fauna brasileira poderia oferecer maiores e mais exóticas opções, como o tamanduá, o beija-flor e o lobo-guará (do hai-kai abaixo):
Do meu alvo espero
De longe nem chego perto
Desconfiado e alerta.
Daí nasceu este livro em que suas peças poéticas, como seria de se esperar de Olga Savary, “dizem, na medida justa da metáfora lapidada pela concisão, que entre palavra, imagem e leitura há um templo onde se ancorar o pensamento em busca dos sentidos sempre abertos, desde que haja o velho e conhecido desejo de ir além das clausuras do espaço e do tempo”, como observa no prefácio Christina Ramalho, doutora em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Se mais fosse preciso acrescentar, seria para dizer que Olga Savary é uma poeta consagrada e amadurecida, que já não necessita de maiores apresentações. Nicodemos Sena não poderia ter escolhido melhor um autor para abrir a coleção Sentimento do Mundo de sua nova editora, à qual, em 2009, deverão ser acrescentados Pablo Neruda e Matsuo Bashô (1640-1694). Para 2009, a LetraSelvagem anuncia também o início de uma coleção de prosa de ficção (novelas e romances), além de uma coleção de ensaios, que deverá ser inaugurada por Octavio Paz.
III
Juiz federal do Trabalho radicado em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, Edivaldo de Jesus Teixeira (1957) nasceu em Centenário do Sul, no Paraná. Formado em Direito, exerceu a profissão de advogado durante vários anos, antes de fazer concurso para a magistratura. Autor de três livros de poemas (dois em edição de autor), diz que a sua poesia vem antes do Direito, explicando que sua obra é escrita sob uma ótica existencial. O autor já dispõe de outro livro praticamente pronto: A inesperada música subterrânea, que ainda não tem previsão de lançamento.
O homem deserto sob o Sol, segundo Teixeira, mostra suas reflexões sobre o homem e o mundo e muitas de suas influências literárias, como Gabriel García Márquez (1928) e Jorge Luís Borges:
(…) Miseráveis!
Deles não serão os meteoros
nem a luz do outono.
De ti não passarão os ventos de Macondo.
Como suportas a dor
e todos os seres vivos suportam a dor
estás plena de quietude e gelo.
Nas pedras. Nas galáxias.
Em Getsêmani!
(….) Vislumbro-o -- paralelo tempo-espaço? --
em águas não idênticas
que em vão navego
afiando rudes facas,
e como Borges, cego,
reelaboro o sonho
até o labirinto,
onde a solidão é absoluta
e o tempo extinto. (…)
IV
Nascido em Santos, Marcelo Ariel (1968) mora em Cubatão, terra do romancista Afonso Schmidt (1890-1964), que lá nasceu e viveu antes de a área ter sido transformada em pólo industrial. A Cubatão que conhece, portanto, pouco tem da idílica Cubatão de Schmidt, mas os seus versos procuram denunciar o avanço descontrolado da insânia fabril que atraiu desesperados de todos os quadrantes do Brasil, especialmente nordestinos, a partir da construção da Via Anchieta no começo da década de 40 e da implementação da indústria siderúrgica nas décadas de 50 e 60.
Ariel está em seu segundo livro, mas, a rigor, Tratado dos anjos afogados é o primeiro que sai por uma editora estabelecida e começa a ganhar espaço na mídia porque o de estréia foi um livro artesanal, distribuído entre amigos. Como para o segundo livro juntou material do primeiro e peças mais recentes, pode-se dizer que ambos mostram exatamente o confronto entre o mundo poético e o mundo real, ou seja, a natureza da Serra do Mar, do outro lado do Rio Cubatão, e as fábricas e suas chaminés que rasgam os céus atirando ao ar fuligem e chamas. Tanto que o título do livro é uma referência ao Rio Cubatão, que antes era puro -- pelo menos ao tempo em que os jesuítas e, depois a Coroa portuguesa mantinham ali uma fazenda e um pedágio para as cargas que desciam e subiam a Serra ao lombo de burros, bestas, índios e africanos -- e, hoje, está morto e infestado por mercúrio, pó da China e outras substâncias cancerígenas, apesar da retórica oficial que prega que Cubatão deixou de ser o Vale da Morte da década de 80. Não é à toa que um dos poemas do livro é dedicado “ao menino que nasceu sem cérebro e o menino que nasceu sem braços e as pernas em Cubatão”.
A exemplo de Paulo Lins (1958), autor do romance Cidade de Deus (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), oriundo de espaços periféricos e conflagrados em que o poder do Estado há muito foi substituído pelo poder de facções armadas pelo dinheiro do tráfico de drogas, Marcelo Ariel vem de uma “perigosa” linhagem de escritores, como diz o seu editor, o escritor Nicodemos Sena, relacionando os nomes de Jean Genet (1910-1986), Louis-Ferdinand Cèline (1894-1961), Tennesse Williams (1911-1983), Máximo Gorki (1868-1936), Lima Barreto (1881-1922) e Plínio Marcos (1935-1999).
Ou seja: Ariel faz parte da família daqueles que fazem literatura daquilo que de pior a sociedade humana produz. É por isso que muitos de seus poemas são dedicados a chacinas -- a morte de jovens que, sem acesso à educação formal ou, apesar dela, atiram-se pelos caminhos do crime e acabam assassinados por bandidos ou policiais a soldo de comerciantes, traficantes ou políticos -- ou a presídios, reproduções pioradas do inferno imaginado por Dante Alighieri (1265-1321). Um exemplo dessa vida que corre nos porões da sociedade e que quase nunca submerge à flor da literatura é este poema, “Jardim Costa e Silva-Cubatão”, em homenagem a um bairro degradado daquela cidade:
(…) Para comemorar
o delegado
oferece um copo de conhaque
para o avião da morte
e olha para mim
pensando em nada,
Draculino é preso
ainda dando as cartas,
antes de ir dormir
(Jogando buraco)
continuem esse jogo,
ele diz…
(Depois no pau de arara reza:
Porra, não fui eu que matei o Sol, foram os homens.)
Draculino é solto
passa na rua e reza de novo para o ar:
É a maior injustiça… o Sol morto e
os homens vivos.
Não se imagine, porém, que Ariel seja um poeta intuitivo. Leitor contumaz, é dono de um sebo itinerante, atividade de que sempre tirou o sustento e que lhe permitiu conhecer uma série de poetas e romancistas que acabaram por influenciar o seu trabalho poético que já vai para mais de duas décadas. Por isso, outro aspecto marcante de sua poética, como assinala o poeta Ademir Demarchi (1960) na apresentação que escreveu para este livro, “é o de uma escritura de cunho filosófico, metafísica, que questiona o tempo todo a essencialidade e a condição humana, que pode se dar por diálogos entre escritores e filósofos, fragmentos dramáticos, ou em poemas que remetem a livros, autores, filmes”. Uma dessas interlocutoras é a poetisa, cronista e tradutora portuguesa Adília Lopes (1960), a quem o poeta no livro escreve duas cartas-poemas.
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). (E-mail: adelto@unisanta.br)